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18 DE JUNHO DE 1971 2087

Como poderíamos, agora, esquecer tudo isso, sorrir olimpicamente sobre o eleitorado, que nas urnas disse o que queria de modo inequívoco, .e buscar nos eventuais tesouros da nossa bagagem soluções que aos alfarrábios ultrapassados dessem pelo menos a aparência de encadernações de vanguarda e progressismo?

Bem se compreende, por isso, que a proposta de revisão se .enquadrasse nos marcos definidores da nossa ordem constitucional.

Como apreciá-la e discuti-la?

A revisão actual, que não pode deixar de considerar-se oportuna, determinou trabalho exaustivo da comissão eventual; era, aliás, o que podia prever-se, dado o maior fôlego e extensão daquela revisão relativamente a todas as anteriores, pese embora aos que, arrebatados na sua euforia reformista, teimam em considerá-la, de "via reduzida". Trabalho exaustivo requerido, além disso, pela preocupação honesta de, na busca das melhores soluções, envolver todos os textos na discussão, a partir de uma, decisão de V. Ex.ª, Sr. Presidente, que teve correspondência processual na comissão eventual, ao afastar-se esta, deliberadamente, de uma votação que. poderia, com comodidade, levar à rejeição dos projectas.

Como membro da comissão eventual, não lamento tal sacrifício, mas pesa-me, pela comissão em si, ao cabo dessa análise, ver invertido o sinal da apreciação. Será que só amadureceremos politicamente quando, peio efectivo aproveitamento das possibilidades procesisua-is1, deixarmos de querer obter o benefício da discussão com vista às conclusões mais válidas e nos descartarmos, assim, da apreciação injusta de que se quis evitá-la?

Suponho ter deixado esboçado, com suficiente clareza., o meu pensamento sobre a ordem constitucional presente na revisão, para que não possam ser alimentadas dúvidas sobre a correspondência e adequação daquela ordem aos profundos anseios e valores por que se estrutura e orienta a nossa comunidade nacional.

Alguns pontos há, no entanto, que requerem um pouco mais de atenção: O primeiro diz respeito à forma de eleição do Chefe do Estado, problema Intimamente relacionado, aliás, com alguma da exposição realizada.

Foi já apresentada à Câmara justificação para não ser alterado o sistema de eleição do Chefe do Estado, justificação que, numa perspectiva desapaixonada e objectiva, realista e consciente de que a oportunidade também é um valor em política - e não dos menores - teremos de considerar satisfatória.

Não adianta que nos enredemos em. mensurar o grau de pureza do corporativismo português, que, aliás, ninguém apresenta como integral; não adianta querer demonstrar que os sistemas encontram a sua perfeição mais na adequação às realidades do que no decalque dos figurinos de tratado com que se alimenta a lógica abstracta de políticos românticos.

Talvez nada disso adiante; mas não poderá ser esquecido que todos corremos o risco de ver sair, de um enredo de conceitos, mágica e indemonstradamente, a conclusão de que o corporativismo anula o cidadão como elemento político, quando se reconhece o facto de aos cidadãos- ser atribuída, na concepção corporativa, projecção política como membros de sociedades válidas e relevantes: família, município, corporação. Será que possamos considerar politicamente anulado o indivíduo porque só pode afirmar-se "na vida política e só terá voto, na medida em que faça parte de uma sociedade familiar, municipal, profissional, cultural ou religiosa"? Insisto na pergunta: Será que a fonte da legitimidade do poder reside apenas

nos cidadãos1 desenraizados, dos laços que natural e inexoravelmente os levam a associar-se?

Não nos enredemos em palavras. O sistema de eleição do Chefe do Estado rumou, em 1959, para a fórmula orgânica que era corolário do esquema constitucional vigente desde 1933. Mais do que a perfeição ou o esgotamento do princípio na organização do sufrágio, o que se torna claro é que o sistema tendeu coerentemente para dar expressão política ao corporativismo na organização do Estado.

E não é a simples circunstância de a Câmara Corporativa possuir meros poderes consultivos que exclui a legitimidade de se invocarem os princípios do corporativismo político para justificar o actual modo de eleição do Presidente da República.

Pois se, de acordo com a Constituição Política, o sistema é presidencialista ou pessoal e não parlamentar, e o órgão supremo é o Chefe do Estado, e não as assembleias, a pedra de toque para, aferir do carácter corporativo do regime há-de ser a forma de designação daquele e não o processo de eleição destas ou os poderes que a cada uma delas se atribuem em certo momento.

Um outro dos pontos a precisar, na lógica do que atrás ficou dito, é o problema fundamental das liberdades individuais.

Nesta matéria, comecemos por não nos deixar tentar por esquemas demasiado simples e só aparentemente claros, que nos reduzem a. opção não se sabe bem se à escolha entre um regime totalitário e um liberal, se à escolha entre um totalitarismo do Estado e um totalitarismo da sociedade.

Que, sobretudo depois da crise do capitalismo liberal subsequente à 1.ª Grande Guerra, por toda a, parte Estado e sociedade se aproximaram, é indiscutível. O gozo natural das liberdades individuais levou a- exploração, à desagregação social; o exercício da liberdade conduziu à sua própria destruição.

O Estado passou a intervir no curso do processo colectivo, umas vezes para o dirigir inteiramente, outras vezes para tentar corrigir os seus vícios. Ao mesmo tempo, as grandes forças sociais que se .geraram no exercício e na autodestruição da liberdade querem tomar o Estado como instrumento dos seus objectivos. E isto mesmo onde se adoptou declaradamente o modelo totalitário: não vemos, na União Soviética e nos países satélites, uma nova burguesia transformar o que se queria que fosse o socialismo igualitário num simples capitalismo de classe ou de posições?

Em face deste panorama, sem dúvida verdadeiro, surpreende que se queira ver na simples reafirmação das liberdades do indivíduo a panaceia de todos os males.

Em história, as mesmas causas produzem os mesmos efeitos. Foi a liberdade ilimitada que se destruiu a si própria, e será ela que se voltará a negar.

Que é o totalitarismo da sociedade tecnocrática e de consumo se não a lógica consequência do exercício da liberdade sem freios, pela qual os poderes se tornam cada vez mais fortes e os que o não são se deixam por ela "livremente dominar"? Que é o totalitarismo do Estado se não o resultado excessivo da reacção colectiva contra os abusos da liberdade que minavam os próprios fundamentos da vida comum?

Se se quer salvaguardar a liberdade e a autenticidade do homem realizado, o que tem de procurar-se é um ponto de equilíbrio onde o poder do Estado não sufoque as naturais formas de expressão social dos indivíduos e dos grupos, mas onde a sua autoridade seja suficientemente forte para defender a liberdade de si própria e a liberdade de todos e de cada um.