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422 I SÉRIE-NÚMERO 12

queísmo de quem julga ter a verdade no bolso, necessariamente, introduzem em qualquer debate.
O que, penso eu, está em causa é a necessidade de não considerar fechado um debate que reconheçamos incompleto.
Penso, até por isso útil, explicitar, ainda que sucintamente, os vários pressupostos da decisão que, relativamente ao projecto de lei n.º 309/II, sobre Interrupção Voluntária da Gravidez, tomei.
5.2 - Penso importante e reveladora a evolução verificada no pensamento contemporâneo sobre a «condição feminina». O «privado», assume, pelo menos, igual importância que o «lado público» dessa condição. A atenção aos problemas de reprodução, de família, da sexualidade e da «cultura feminina» são objecto de um debate sem precedentes.
Aquilo que era considerado como estritamente «pessoal» e até dum domínio reservado e íntimo, é objecto de reflexão e de estudo, assumindo-se em largos sectores a ideia de que a «libertação» sexual e afectiva da mulher é um aspecto da sua emancipação política.
O título de um livro conhecido de Kate Millett, Sexual Politics, é, por si só, significativo.
Essa reflexão, permitiu já, aliás, pôr em relevo como o capitalismo industrial do século XIX, agravou a situação da mulher, mesmo em relação ao modelo vitoriano, gerando um isolamento crescente das mulheres operárias inerente à sua exclusiva ocupação em empregos não especializados, mal pagos, sem futuro, ao mesmo tempo que, pela deslocação dessas mulheres para a fábrica, obrigou outras a verem perdida a possibilidade de se dedicarem a qualquer actividade. (Cf. Gerda Lerner, The Lady and the Mill Girl: Changes in the Status of Women in the Age of Jackson in Mid-Continent American Studies Journal, 10, Primavera de 1969. p. 5 e segs). Ou, como no estudo da Louise Tilly e Joan Scott (Women, Work and Family, New York, 1978), evidenciar como o trabalho feminino não foi apenas forma de independência mas. e até na maioria dos casos do século passado, meio de trazer um acréscimo de recursos ao grupo familiar.
Há, em Portugal, um debate por fazer sobre a condição da Mulher.
Mas, penso mistificador enxertá-lo aqui, neste debate.
Não julgo, com efeito, que a problemática do aborto possa e deva ser vista exclusivamente sob a óptica da mulher.
5.3 - Não penso, igualmente, que o quadro sociológico esboçado a propósito da realidade económica e social portuguesa, seja. por si. determinante das soluções propostas.
Quando se assinala que a liberdade não é autêntica para quem diariamente trabalha longas horas, se vê forçado a longos trajectos e em más condições, entre o local que habita e aquele onde trabalha, está mal alojado e com tudo isto não tem tempo, nem meios, nem força, para fazer valer essa liberdade que assim seria puramente formal, não é pura e simplesmente verdade que o remédio para esta situação seja o acrescentar de mais opressões, como. por exemplo, a privação dessas mesmas liberdades ditas formais.
É a própria acusação-diagnóstico a apontar respostas.
Ou seja, o caminho certo estará na promoção de adequadas políticas de habitação, de saúde, de emprego, de salário, de segurança social, de educação, etc., etc.
Não há problemas sociais resolvidos quando se actua sobre os efeitos e não sobre as causas.
E quem está verdadeiramente empenhado na transformação do Mundo e na Justiça, não pode aceitar que em vez de oportunidades a todos oferecidas, haja apenas heranças reservadas a uns tantos.
Acusamos o liberalismo do século XIX na medida em que na sua actuação política «foi menos um governo que alargava o campo e os beneficiários da liberdade do que um governo que defendia as situações adquiridas pela liberdade».
Querer melhorar condições económicas e sociais por políticas restritivas da natalidade é, tão ilegítimo, como as políticas expansionistas baseadas no crescimento forçado da população.
A Alemanha hitleriana pretendia que as mulheres se consagrassem inteiramente à maternidade e à família.
Mas, não poderá esquecer-se neste debate que, como escreve Kate Millett (in Política Sexual, p. 167, da edição portuguesa), «a despeito de fortes objecções populares, o 2.º Plano Quinquenal de Estaline, proibiu, em 1936, o aborto nos casos de primeira gravidez. (...) Em 1944, o aborto legal foi inteiramente abolido, e a ajuda a uma mulher abortar tornou-se passível de 2 anos de prisão».
5.4 - É a realidade económica e social portuguesa, na medida que ela constitui para todos nós desafio permanente à nossa capacidade de criar uma sociedade mais digna, livre e justa, que põe em relevo as condições, essas sim, de hipocrisia, com que algumas posições foram sustentadas ao longo deste debate.
No início dos anos 70 fez sucesso um diálogo que Philip Roth escreveu no seu Our Gang. Alguns o recordarão, mas valerá a pena lembrar essa denúncia:

Cidadão: (...) no meu fervor em participar no respeito que tem para com os que ainda não nasceram, vejo-me seriamente preocupado ante a possibilidade de que o Tenente Calley possa haver cometido um aborto.
Repugna-me dizê-lo, senhor presidente, mas preocupa-me profundamente o lembrar-me que um desses 22 civis vietnamitas que o Tenente Cally matou, possa ter sido uma mulher grávida.
Tricky: Espere 1 minuto. Temos uma tradição nos tribunais desta terra, pela qual-um homem é considerado inocente até que se prove a sua culpabilidade.
Havia crianças nessa Vala de My Lai e sabemos que havia mulheres de todas as idades, mas não vi um único documento que sugira que essa Vala de My Lai contivesse uma mulher grávida.

Pela minha parte, denunciarei com toda a força de que for capaz, situações similares à que esta ironia cruel retrata.
Não é possível depois deste debate e em nome dos princípios aqui proclamados, manter o actual montante dos abonos de família.
Não é possível, uma política fiscal, que penalize os casais e a existência de filhos.
Não é possível deixar sem renovação profunda uma política económica que não privilegia a satisfação das necessidades básicas da população, antes deixa sem habitação, nem transportes, nem acesso à saúde, ao emprego ou às garantias de uma velhice tranquila, muitos portugueses.