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12 DE NOVEMBRO DE 1982 417

lado, dum projecto vital já iniciado; por outro lado, e com uma carga simbólica perturbantemente expressiva, do próprio corpo da mulher. A libertação da mulher pela decisão do aborto será uma libertação ilusória e contraditória, até porque, com ele, como que reconfirma uma certa servidão ao homem - protagonista incólume do acto procriador. O aborto nunca será uma forma de contracepção, disponivelmente escolhida fora de tempo.
Reconheço, no entanto, que situações existem em que a interrupção da gravidez coloca problemas de que os nossos dias não se poderão emancipar; penso, designadamente, no abono terapêutico e no aborto eugénico.
Reconheço ainda, noutro plano, que às leis não pertencerá promover a observância dos deveres religiosos nem erigi-los em exclusiva matriz de uma ordem jurídica laica. Aos católicos caberá restringir, acatando as regras que comandam o universo pessoal de cada um, a sua liberdade de escolha; aos responsáveis políticos incumbirá criar condições para que a auto-decisão de todos os cidadãos se enquadre num plano colectivo coerente e assente nas realidades da época e do país que de todos é; isto sem se abstrair da valoração ética que a elaboração das leis necessariamente postula. A não ser assim, o instituto do divórcio nunca poderia ter encontrado guarida na ordem jurídica portuguesa. Creio que, com resguardo das possíveis diferenças, não deverá haver dois pesos e duas medidas.
Tenho, aliás, presente o que. até numa esfera confessional, foi já reflectido sobre a questão. Como exemplo, relembro o impressionante depoimento do Padre Pohier, no colóquio promovido pelo Centro Católico dos Médicos franceses (cf. Avortement et respect de La vie humaine, «Éditions du Seuil», Paris, 1971, pp. 174 e segs.). Disse ele então, além do mais, que não podia rotular global e aprioristicamente de imoralidade todos os países que produziram legislações em que o aborto não é necessariamente punido. «Como cristão - sublinhou - não posso pretender que as igrejas anglicanas da Inglaterra, do Canadá, dos Estados Unidos, que as igrejas protestantes da Suíça, da Suécia e de outros países, nada compreenderam do Evangelho porque consideraram que o aborto não é forçosamente um pecado. Não digo que esteja certo porque eles dizem que está certo. Direi simplesmente que não me sinto no direito de proceder como se existissem apenas pessoas imorais, grupos imorais, sociedades imorais que pensam desse modo (...)".
Esta é, na verdade, a minha posição.
Enquanto pessoa, acato a doutrina da igreja católica, no seio da qual activamente me formei e vivo; mas até que ponto a poderei impor, sem a mais leve atenuação, num plano temporal e normativo, erigindo-a em inderrogável padrão de uma política criminal de que são destinatários católicos e não católicos?
Tudo isto faz sobressair ângulos de evidente melindre e as soluções a alcançar resultarão dum sensato e realístico balancear de todos eles. Legislar é afirmar; uma das vocações da pessoa humana é a sua capacidade e a sua vontade de afirmar. Mas legislar é também dialogar, criando condições para que a capacidade e vontade de afirmação se entrecruze com a capacidade e vontade de afirmação dos que não pensam como nós; foi para esse consenso essencial, que não se esvai num mero arrumar de palavras, que sempre fiz apelo. Claro que tal não será fácil neste clima colectivo morno e flácido em que todos (ou quase todos) nos espreguiçamos. Como dialogar sem que saibamos ou queiramos afirmar?

3 - Duas observações finais.

Diz a primeira respeito à dosimetria das penas previstas para as hipóteses do aborto punível. Comentei a esse propósito, em 1975, que o nosso Código Penal «arrastava uma decrepitude, por vezes feroz, de quase 90 anos». E anotei ainda: «A velha lei foi, visivelmente, acicatada por uma cega moral de costunes (...). Contava Mauriac, nas Mémoires Intérieures, que sua Mãe fora uma santa. Lutava, mesmo magoando, por ser boa e altruísta; encarava hieraticamente uma cega moral sexual, com um trágico receio de tudo o que pudesse sobrepor-se à regra; hostilizava, sem margem a perdão, quem, mesmo venialmente, a beliscasse».
Penso hoje como então pensava. E isto, além do mais, porque uma lei demasiado rígida e severa nem sempre alcança o mais producente efeito dissuasor nos que a infringem, causando, ao invés, uma inevitável reticência naqueles a quem cabe a tarefa de a aplicar.
Tem a segunda observação a ver com o problema do aborto clandestino. Interrogo-me, como sempre me interroguei, sobre a incidência da liberalização na sua prática efectiva. E inclino-me mesmo para uma resposta negativa, avalizada pela experiência de países onde ela existe - embora nestas áreas da «criminalidade oculta» não possam existir certezas peremptórias. O que há, fundamentalmente, é que dar corpo, forma e eficácia a uma correcta política de controle normal da natalidade.

Declaração de valo do Deputado Amadeu dos Santos (PSD) sobre o projecto de lei n.º 309/II.

A interrupção voluntária da gravidez, por parte de qualquer gestante, é acto marcante, psíquica e fisicamente, para qualquer mulher e, no caso de a mesma ser casada, para o cônjuge, não excluindo ainda as «marcas» de tal acto nos seus restantes familiares. O alcance e a profundidade dos malefícios de tal acto não estão, de forma alguma, determinados em qualquer país e, muito menos, em Portugal. Por tudo isso, se pode concluir que, se, por um lado. a apresentação de um diploma como este, teve (tem) a virtude de suscitar a atenção para este problema em Portugal (finalmente), já a marcação da sua discussão na Assembleia da República, nesta data, não deixa de surpreender de merecer reprovação, obstando, por isso, a que o citado diploma tenha merecido o meu voto a favor.
Surpresa, pois o PCP tinha sido alertado, quando da entrega desse diploma em Fevereiro do corrente ano, que tal matéria para nós deveria merecer um debate nacional, a nível de toda a população, e, posteriormente, objecto de referendo, pelo que no debate e votação da revisão constitucional iríamos propor o referendo. Na mesma altura, recordo, 60 deputados do PSD subscreveram um documento que solicitava um debate interno e nacional sobre o tema, debate esse que nunca iria demorar menos de um ano. Assim, a marcação, por parte do PCP, do debate deste diploma, 8 meses após a sua apresentação, não pode deixar de me merecer alguma surpresa.
Reprovação por, apesar de o PCP saber que não tinha havido um debate nacional organizado, sério e aprofundado, nem a Assembleia da República ter tido oportunidade de se robustecer com opiniões, achegas, recepção de organizações sociais interessadas, etc.. como é habitual as comissões da Assembleia da República fazerem antes de qualquer debate no Plenário, como aliás a Sr.ª Deputada Teresa Ambrósio, do PS, teve