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27 DE FEVEREIRO DE 1987 1921

do poeta que ele, José Afonso, sempre foi em todos os actos da sua vida, na acepção mais vasta e profunda do termo.
Aprofundando e ampliando esta vertente, a sua música e arte ganharam cada vez maior qualidade, assim mesmo, ou por isso mesmo, sendo cada vez mais empenhadas, humanas e fraternas. José Afonso chegou a atingir, ou pelo menos a roçar, a genialidade em tantas e tantas das suas cantigas. José Afonso transformou-se não só na voz de um protesto e de uma geração como na voz de um sonho e de um futuro. Exprimiu como nenhum outro as dores, os anseios e as esperanças colectivas de um povo o nosso povo.
Assim, nada mais natural (diria, até, inevitável) que, quando chegou o libertador 25 de Abril, José Afonso lhe tivesse dado a voz cantando que «o povo é quem mais ordena». Nada mais natural, tão natural como o sol ou o vento, que ele se transformasse, como eu disse, num símbolo vivo do 25 de Abril. Por isso, ainda, nada mais natural que, mesmo apesar da sua morte, a sua voz continue viva pelas ruas, pelos campos, pelas praias, pelas fábricas da nossa Pátria.
Sr. Presidente, Srs. Deputados, permitam-me ainda que, sem seguir nenhum texto preparado, recorde um pouco esse querido amigo e companheiro de tantos dias e tantas horas, desde Coimbra até aos recitais que fizemos um pouco por todo esse país. Permitam-me que recorde uma noite de Primavera em que, nas margens do Mondego, o amigo me pôs a mão no ombro e disse «vou-te cantar uma coisa que fiz de novo» - era, exactamente, a Balada do Outono. Permitam-me que recorde com emoção essa balada que começou a mudar a música portuguesa e, afinal muito mais, neste país. Balada que, hoje, ganha um especial significado quando diz:

[...]Água das fontes calai
Ó ribeira chorai
Que eu não volto a cantar [...]

No seu último e único espectáculo no Coliseu - vai para três ou mais anos -, nós vimos o Zeca, já doente, incapaz de segurar os papéis contendo as letras das canções (que, aliás, nunca conseguiu saber de cor) e, com lágrimas, mais no coração do que nos olhos, seguimos esse seu último espectáculo - que nós, os seus amigos, sabíamos que era de facto o último que ele poderia dar.
Recordo, também - vai fazer 25 anos -, o Encontro Nacional de Estudantes em Coimbra. Aí, porque, na altura, a repressão policial era muito forte, ele, não por menos coragem - sempre a teve toda - mas para não prejudicar outras formas de intervenção de estudantes, perguntou-me se seria adequado cantar o seu Coro da Primavera que, depois, acabou por cantar, pela primeira vez. Neste ele diz:

[...]Ergue-te ó sol de Verão
Somos nós os teus cantores
Da matinal canção
Ouvem-se já os rumores.
Ouvem-se já os clamores,
Ouvem-se já os tambores
[...]

Só quem viveu esse e outros momentos (em que ele batia na viola com os dedos, simulando os tambores), este «movimento» que crescia, é que sabe que o «som» de José Afonso era a esperança não só de uma geração, não só dos seus amigos, não só dos seus companheiros mas de todo um povo que sentíamos que estava atrás de nós.

Muitos dos que estão nesta Câmara talvez tenham discordado muitas vezes de algumas atitudes políticas do Zeca Afonso. 15so é legítimo, só que, como seu amigo e como pessoa que o conhecia bem, deixem que lhes diga que, para além da aparência de uma certa agressividade, o que estava sempre na base das suas atitudes era um homem livre, um homem fraterno, um homem generoso. Poder-se-á ter discordado do Zeca Afonso, mas nunca ninguém o poderá acusar de alguma vez ter tido algum gesto ou de ter praticado algum acto para obter quaisquer benefícios ou quaisquer dividendos. Sempre foi um homem que não teve nada a ver com o poder, não teve nada a ver com oportunismos, não teve nada a ver com transigências de qualquer ordem. Por isso, morreu pobre. Este país tem uma dívida de gratidão para com ele. Morreu à «margem» e o seu enterro constituiu uma impressionante manifestação de pesar. Foi ainda uma manifestação desse seu espírito livre e rebelde: aos amigos não pediu grande música, nem sinfonias, nem nada; pediu para não irem de luto; pediu, antes, que se cantasse no seu funeral - como se cantou - e que o seu caixão fosse, apenas, coberto com um pano vermelho. Era um pano vermelho sem nenhum símbolo, sem nenhuma sigla, sem nenhuma palavra, porque o Zeca nunca se deixou «enfileirar», amordaçar, sempre foi um homem livre dentro dos seus ideais de liberdade, de justiça, de bem-estar para este povo que ele amou.
Por isto, por tudo que ele representa, Portugal está de luto, nós estamos de luto, mas sabemos que o Zeca Afonso, com tudo o que representa, com as suas cantigas, continuará a ser uma voz livre, fraterna e belíssima, no meio do nosso povo.
Por isso o PRD se associa ao voto de pesar pela sua morte e a tudo que se faça para que o País cumpra a dívida de gratidão que tem para com ele.
Aplausos gerais.

O Sr. Presidente: - Para uma declaração de voto, tem a palavra o Sr. Deputado António Capucho.

O Sr. António Capucho (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Associando-nos ao voto de pesar pela morte de José Afonso, começarei por citar o poeta:
[...] O mito é, na maior parte das vezes, uma pista errada porque fundada mais na imaginação das pessoas do que nas contingências falíveis da acção humana individual ou colectiva. É preferível que o próprio objecto do mito desfaça serenamente o equívoco que lhe deu origem para que ele mesmo não se convença de um mérito que por justiça efectivamente nunca lhe devia ter pertencido.
[...] Só nos sentimos úteis quando somos solicitados e isso compensa-nos de muitas frustrações que o mito esquece quando nos simplifica, reduz ou exalta.

José Afonso não é um mito e recusou sê-lo. Não seremos nós a contribuir para a sua mitificação.
Mas foi. É e será um nome essencial na cultura portuguesa.
Como compositor, autor e intérprete distinguiu-se como um dos maiores valores contemporâneos da música popular portuguesa.
Escreveu versos simples e curtos, de fácil apreensão, mas nem por isso desprovidos de qualidade e da eficácia que os justificavam. Versos que harmonizou e equi-