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1922 I SÉRIE - NÚMERO 49

librou notavelmente com a sua música, a obra musical de José Afonso representa uma relação profunda e íntima com o homem e a realidade concreta que o circundava.
A tudo isto juntava um dom excepcional: uma voz única, límpida, vibrante e profunda.
A resultante era uma unidade quase perfeita no género musical que adoptou: palavras e música quanto bastavam, nem a mais, nem a menos; depois aquela voz; finalmente, como consequência necessária, um poder e uma força comunicativa extremamente fortes.
Porque politicamente nos separava um abismo, estamos particularmente à vontade para lembrar José Afonso, também no que transcende a sua carreira como músico.
Homem do povo, de costas voltadas para o poder e rejeitando o carreirismo, distinguiu-se pela sua simplicidade e desprendimento pelos valores materiais, mas também pela coragem e frontalidade com que assumiu uma luta com as armas de que dispunha e que melhor do que ninguém sabia utilizar.
Na luta desenvolvida, designadamente pela minha geração no mundo académico, contra o totalitarismo e o obscurantismo, José Afonso teve um papel relevante na sensibilização e mobilização das mentalidades.
E teve talvez a suprema distinção da sua carreira quando uma criação sua foi escolhida para detonar o movimento militar que desencadeou a Revolução de Abril.
Sr. Presidente, Srs. Deputados, para terminar estas simples palavras em homenagem ao homem, ao músico e ao poeta, permitam-me que vos leia um pequeno excerto do poema de José Afonso Jesus no Horto:

Homem viagem da democracia.
Homem península vítima da hora.
Cobrem-lhe a pele os Ciclos Vespertinos.
E a morte ronda quando não demora.

Aplausos gerais.

O Sr. Presidente:- Para uma declaração de voto, tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados, meus caros José Manuel Mendes, Raul Castro, José Gama, José Carlos Vasconcelos, António Capucho: É fácil falar depois de vós. Antes de mais, para, na qualidade de cidadão português e de irmão que fui - porque assim me considero do Zeca Afonso, vos agradecer as belas palavras que sobre ele aqui trouxestes.
De entre todos aqueles que admiram o Zeca Afonso tenho um raro privilégio: ainda coincidi em Coimbra com ele durante três ou quatro anos; fui a África com o Orfeão e com ele; convivi com ele em Lourenço Marques vários anos e acompanhei-o à guitarra imensas vezes quando ele cantava, como só ele o sabia fazer, o fado clássico de Coimbra - fado que nunca renegou.
Mas já então, quando em Coimbra eu o acompanhava e ele cantava, ele fazia aquilo a que Fernando Pessoa chamou «uma revolução todos os dias dentro da nossa alma». O fado de Coimbra, que é de extraordinária beleza lírica, como sabem, não o satisfazia. E ele germinava uma revolução que veio a trazer da alma para a vida sob a forma das baladas, de que foi o inovador porque o sinal do génio é a capacidade de antecipação. Ele teve essa capacidade.
E qual foi a revolução que ele tirou da alma para a vida? Foi meter a ideia dentro da beleza do fado de Coimbra, foi harmonizar, como compositor, como poeta e como intérprete essa beleza com essa ideia e pôr essa harmonia ao serviço dos bons combates. Ele foi, no bom sentido da palavra, um revolucionário e conseguiu aquilo que nenhum de nós conseguiu: provavelmente, houve discursos geniais por parte da oposição portuguesa mas que morriam no dia em que eram proferidos, enquanto que a sua mensagem era repetida todos os dias por milhares de portugueses que cantavam as suas trovas. Essa era a sua grande força!
Devo dizer que o conheci como só os irmãos conhecem os irmãos. Ele era um «franciscano». Vivia aquela essência do franciscanismo que vive na alma do povo português; interpretou-a como ninguém.
Declarou guerra às convenções. Era homem de uma extraordinária simplicidade. E é preciso ter conhecido o seu pai que - tenho muito orgulho em dizê-lo aqui pois, porventura, nem todos o saberão - foi o mais extraordinário magistrado com que trabalhei em toda a minha vida profissional. Foi juiz da relação de Lourenço Marques e daí não passou porque era completamente surdo. Vivia isolado dos sons do mundo e, convivendo todas as horas com o mundo do direito, atingiu uma perfeição técnica e humana que, provavelmente, nenhum outro magistrado terá atingido na história da magistratura portuguesa - digo isto sem nenhuma espécie de hesitação. Seu pai dominava completamente a técnica jurídica; escrevia primorosamente o português; tinha uma intuição rara do caso jurídico; era um homem excepcionalmente inteligente - a inteligência do Zeca Afonso tem origem conhecida - e era, também e sobretudo, um homem excelente, um homem bom, tal como sua mãe, ainda viva, uma piedosa e bondosíssima senhora, que deve estar a sofrer muito neste momento.
O irmão dele, João Afonso, que também cantava muito bem o fado de Coimbra, era meu companheiro de mesa de café em Lourenço Marques e meu companheiro do grupo dos democratas de Moçambique. Continuámos lá a convivência de Coimbra. Conheço-o como conheço as minhas mãos.
A beleza das trovas de Zeca Afonso tem, em meu entender, três ou quatro origens identificadas.
A primeira é a beleza do fado de Coimbra que ele nunca renegou e que soube conciliar, exactamente, com a beleza das suas baladas.
A segunda é a circunstância curiosíssima de tocar mal viola: só sabia três ou quatro posições na viola.
A terceira origem reside no facto de José Afonso não saber música. Ele tinha que memorizar os sons. Porventura, poucos de vós imaginais o que significa ser capaz de fazer o que ele fez sem saber escrever música. Ele tinha que memorizar os sons que criava e isso não é fácil, porque é o mesmo que um analfabeto tentar decorar os Lusíadas ou fazê-los de cor, sem saber escrever os versos que cria.
Pois bem, o Zeca Afonso sabia três ou quatro posições na viola e não sabia escrever música. Esse facto imprimia às suas composições a simplicidade que lhes permitiu serem entendidas pelo povo português. Não era uma música rebuscada; era uma música à base de um, dois tons, nunca mais. Essa simplicidade permitiu-