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2454 I SÉRIE - NÚMERO 63

chicoteados pelos sicários do salazarismo com chicotes que, cinicamente, tinham os nomes dos mais destacados generais da República Espanhola.
Por mais quatro vezes, ao longo da sua vida de apenas 48 anos, conheceu a prisão, tendo, em consequência de uma delas, perdido o que seria o seu terceiro filho, já que sua esposa, não resistindo a mais este golpe, veio a abortar dias depois da sua captura. Por isso, Mário Sacramento escrevia:
Jovem ainda, sofri em pêlo aquilo que muitos ao longo da vida só conhecem por ouvir dizer.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Encontram-se felizmente dispersos por quase todas as bancadas Srs. Deputados que podem testemunhar o que foi esta vida de paixão e grandeza de Mário Sacramento.
Secretário-geral do 1.º Congresso Republicano de Aveiro, participou nos trabalhos preparatórios do segundo, vindo a falecer entretanto. Morreu a meio da caminhada, ele que tanto direito tinha à vida e que doou aos outros a sua vida de verdadeiro apostolado do socialismo.
Poucos como ele terão associado uma militância cívica sem interrupção ou quebra a uma militância intelectual simultaneamente rica e frustrada pelo relinchar censório, que, em segundos, eliminava o que tinha custado horas de sono, litros de café e indizíveis sacrifícios económicos.
Verdadeiro campeão da unidade e do diálogo, para este partia sempre despido de preconceitos sectários e com a humildade que a sua cultura universalista permitia e impunha.
Médico dos pobres lhe chamavam, porque conseguiu a proeza de, apesar de ser dos melhores radiologistas de Aveiro, morrer completamente pobre. Em carta dirigida à esposa, do reduto norte de Caxias, escrevia:
Amiga: a amizade é a única coisa que vale a pena capitalizar e que, quando é autêntica, nunca falta com os seus dividendos no momento próprio. Julgo, assim, que somos ricos da única coisa que deveras conta e que não trocaria por coisa alguma.
Tendo os seus méritos clínicos chegado ao conhecimento do Governo Francês, foi-lhe oferecida uma bolsa no Hospital de St. Antoine, em Paris. Só que o regime de então, incendiado de ódio, lhe recusou, pura e simplesmente, o passaporte.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Mário Sacramento deixou uma obra ensaísta enorme, que vai dos Ensaios de Domingo à Estética do Neo-Realismo, da teoria queirosiana ao estudo de Fernando Namora, O Homem e a Obra, do importante prefácio à Praça da Canção, de Manuel Alegre, até ao estudo da lírica de Cesário Verde.
E hoje, que Fernando Pessoa se senta à mesa de todas as tertúlias intelectuais, é cometer irreparável injustiça não afirmar que foi Mário Sacramento quem primeiro, em Portugal, estudou e reflectiu sobre a heteronomia pessoana, num volume quase todo escrito na prisão e intitulado Fernando Pessoa, Poeta da Hora Absurda.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: homem que apenas adoptou como sua a metafísica da dor, ardia nele a consciência de um resgate final colectivo, e não o juízo crítico de quem toma a última carruagem do último comboio para o paraíso. Por isso mesmo, escolheu a luta terrena e sem mitos, desigual e tantas, tantas, tantas vezes injusta.
Deu aos outros tudo o que tinha para lhes dar: a saúde, o talento, a firmeza e a generosidade. Morreu de mãos limpíssimas e de bolsos vazios.
Minado por todas as misérias físicas, escreveu a sua carta-testamento, em que, com alguma aproximação, previa a data da sua própria morte.
Nesse documento de impressionante rigor remata com um grito patético:

Façam um mundo melhor! Não me obriguem a voltar cá! Ouviram?!

Sr. Presidente, Srs. Deputados: Evocar Mário Sacramento é, de facto, evocar um homem que lutou e quis um mundo melhor.
Compete-nos também a nós escutá-lo no seu imperturbável silêncio tumular, dando-lhe forma e conteúdo, tomando o seu exemplo como bandeira e medida, sendo, em uma, tão dignos dos nossos mortos como o desejamos ser dos vindouros.
Até porque, como escrevia José Gomes Ferreira, «Os mortos vão ao nosso lado».

Aplausos do PS, do PRD e do PCP.

O Sr. Presidente: - Inscreveram-se os Srs. Deputados Vasco da Gama Fernandes, José Manuel Mendes e Frederico de Moura, creio que para, a título de formularem pedidos de esclarecimento, falarem sobre a intervenção do Sr. Deputado Seiça Neves.
Tem a palavra o Sr. Deputado Vasco da Gama Fernandes.

O Sr. Vasco da Gama Fernandes (PRD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Por uma coincidência triste, invocou-se hoje neste Plenário a memória de dois grandes homens de civismo português: Fernando Mayer Garção - meu colega, meu companheiro, homem de primeira fazia, ele próprio intelectual, poeta, generoso - e Mário Sacramento, com uma obra já deixada para a eternidade.
Quando ouvi referir esses dois nomes, veio-me à colação um ensaio de Gregorio de Maranon sobre o dever dos intelectuais, escrito na capitação republicana da Espanta, deixando uma mensagem forte e viril, de submissão à ditadura. Maranon dizia nesse ensaio que não é intelectual o homem que se debruça sobre o umbigo; não pode ser intelectual o que se afasta do imenso clamor da vida - estou a servir-me de uma expressão de Adolfo Casais Monteiro; «não pode ser intelectual o homem que passa a vida nas bermas quando a estrada está a sofrer ...»
Qualquer deles cumpriu com o seu dever. Porém, o caso de Mário Sacramento é para mim um caso especial. Ensaísta do povo, médico do povo, cidadão do povo, estimei-o fraternalmente.
Havia de ter a última recordação da minha vida, quando os cães-polícias da PIDE foram açulados contra mim e contra o Prof. Cintra na última homenagem que lhe quisemos prestar, com uma romagem ao seu túmulo, em consequência do Congresso Republicano.
Está ainda por descrever, Srs. Deputados, o que foi esta obra, por vozes anónima, dos grandes escritores da resistência. Quando um dia a paciência e o dever obrigarem algumas pessoas, com qualidades suficientes para transmitir essa mensagem, a fazê-lo, havemos de senti que na clandestinidade, à semelhança das