3 DE NOVEMBRO DE 1989 275
Curiosamente, diz que não se aplica aos cofres dos tribunais, aos cofres dos conservadores, notários e funcionários de justiça, aos cofres do Supremo Tribunal Administrativo e aos cofres, das auditorias administrativas. Não cita, não exclui, a Assembleia da República. E porquê? Porque está fora do contexto. Não tem nada a ver com este tipo de autonomia administrativa e financeira burocratizada e hierarquizada. Não tem nada a ver com a autonomia administrativa e financeira de que goza a Assembleia da República e de que deve gozar, em nosso entender, o Presidente da República. São assuntos que estão de fora.
Diz-nos o Sr. Deputado: "Não é por os tribunais não terem autonomia administrativa e financeira que deixam de ser um órgão de soberania." Antes de mais, eles não são um órgão de soberania em sentido estrito, como sabe, mas em sentido lato. Todos nós admitimos essa figura e, de algum modo, essa nobre ficção, e é bom que ela continue, mas não mais do que isso. Começa por, isto: os tribunais não têm um órgão onde os seus representantes, que são os juízes, os delegados do Ministério Público, possam reunir-se para emitir uma vontade em representação do todo colectivo ou, então, também não podemos considerar cada magistrado um órgão de soberania porque, na verdade, multiplicava por tal número os órgãos de soberania que seria um contra-senso. Seria insensato que se desse a cada juiz autonomia administrativa e financeira.
Porém, creio que a consideração é a, inversa: se eles podem ser órgãos de soberania sem terem autonomia financeira e administrativa, a constatação a tirar é que pelo facto de serem órgãos de soberania não ficam proibidos de terem autonomia administrativa e financeira; pelo contrário, parece que a prerrogativa da soberania, que é o mais, pressupõe e inclui, necessariamente, a prerrogativa da autonomia administrativa e financeira, que é o menos. A lógica é de tal ordem que não vale a pena envolvermo-nos, outra vez, nesta discussão.
Dir-lhe-ei também o seguinte: agora o Sr. Deputado não falou nisso, mas da outra vez mencionou a circunstância de se estar em presença de um órgão unipessoal. Ora bem, nem o Prof. Teixeira Ribeiro, nem lei alguma que eu conheço, exige que se trate de um órgão colectivo para gozar da autonomia administrativa e financeira. Portanto, não há qualquer obstáculo.
Por outro lado, devo dizer que o Presidente da República, apesar de ser um órgão unipessoal, não deixa de coordenar serviços administrativos que ultrapassam as trás centenas de funcionários. Portanto, não se acentue demasiado a natureza de órgão unipessoal porque, nomeadamente, ao nível da autonomia administrativa, ela refere--se mais ao serviço dele dependente do que dele próprio, como é natural, ,e também, por decorrência disto, da autonomia financeira. Apesar de tudo, lembro-lhe que não seria um caso único, porque, com o nosso voto, por proposta de que tenho muita honra por ser minha, foi aprovada para a Alta Autoridade contra a Corrupção a autonomia administrativa. Porquê? Porque se entendeu que ela devia gozar de prerrogativas de independência e de prestígio que implicam e aconselham a existência dessa autonomia.
Ora bem, se isto assim é para a Alta Autoridade contra a Corrupção, o que se não dirá, em termos de justificação, para o Presidente da República.
Digo, ou dizemos, no preâmbulo - disse digo, porque fui o autor do texto - que entendemos que, nesta fase, não deveríamos ouvir o Presidente da República, não disse o Sr. Presidente da República, para usar a distinção feita pelo Sr. Deputado Narana Coissoró. E porquê? Porque nos pareceu que, ao nível da iniciativa, a independência dos deputados está em pé de igualdade com a do Sr. Presidente da República. É sempre o problema da autonomia, da independência. Já ao nível da comissão é perfeitamente razoável que se ouça o Presidente da República e o seu serviço, porque, e como há no diploma matéria orgânica e que seria bom vir a encontrar reforço, a experiência do serviço do Presidente da República pode ser um válido contributo para o aperfeiçoamento do diploma que aqui havemos de fazer. Fomos os primeiros a reconhecer que o diploma é, por um lado, sucinto, por outro, incompleto e, ainda por outro lado, imperfeito, porque tivemos a preocupação de o aproximar o mais possível à regulamentação da autonomia da Assembleia da República para que fosse mais irrefutável a justeza de um voto favorável, dada a similitude que existe entre um e outro órgão de soberania.
Tenho muito medo dessa reforma da contabilidade Pública, não me leve a mal, porque tenho receio que volte e surgir um argumento igual ao do Prof. Teixeira Ribeiro, agora já não seria "o Prof. Teixeira Ribeiro disse", mas "a lei da contabilidade pública diz".
Ora bem, lá vamos nós, mais uma vez, submeter a uma lei ordinária e transformar essa mesma lei num "travão" para que esta Assembleia faça outro diploma ordinário, com o mesmo valor jurídico do primeiro, relativamente a um órgão de soberania e não aos serviços da Administração Pública, porque é a ele que se dirige, fundamentalmente, a reforma da contabilidade pública. Tenho muito medo, mas, enfim, cá estaremos atentos, e espero que efectivamente isso não impeça que venhamos a fazer um bom diploma.
A nossa disponibilidade é total para tão rapidamente quanto possível aprovarmos na especialidade, ao nível da comissão, uma boa lei de autonomia administrativa e financeira para o Presidente da República. Penso que não há mal algum, pelo contrário, em que ao nível da comissão se ouçam os serviços da Presidência da República. Não vejo que haja algum melindre nisso, não tanto pelo Presidente da Republica, até porque todos nós temos consciência de que o Presidente da República sobrenada um pouco estas preocupações. Mas o que estamos aqui a fazer é construir o Estado Português e a aperfeiçoá-lo progressivamente, tornando-o cada vez mais um Estado europeu e moderno, em que os órgãos de soberania, por serem soberanos e por deverem ser separados, devem ser autónomos. Isto é, devemo-nos ir tornando, gradualmente, naquilo que todos desejamos que o nosso Estado seja, repito, um Estado moderno, europeu, progressivo e, sobretudo, coerente, já que o Sr. Deputado também invocou a coerência.
Obrigado, Sr. Presidente e Srs. Deputados. Faço votos para que muito em breve possamos traduzir este estado de espírito, não só no voto de aprovação na generalidade, o que já é uma conquista e um passo em frente, mas também que não demoremos a aprovar este diploma, pondo termo a uma incoerência que, de algum modo, a todos nos envergonha um pouco pelo tempo que demorámos a pôr-lhe termo.
Aplausos do PS.
O Sr. Silva Marques (PSD):- Pobre general Eanes, que tanto sofreu!