21 DE FEVEREIRO DE 1990 1631
do projecto - que se reconhece como do Sr. Deputado Almeida Santos, embora nos seja apresentado pelo Partido Socialista - se refere como sendo o princípio do fim da exclusiva concepção individualista do processo da justiça, o que é uma verdadeira revolução jurídica.
Isto é, trata-se de um dos aspectos fundamentais, pois, na realidade, a acção popular vem operar uma transformação profunda na característica da legitimidade processual, quer em termos de direito civil quer em termos de direito administrativo, como resulta, em especial, do que consta no artigo 7.º do projecto de lei n.º 480/V do Partido Comunista, em que se confere a todos legitimidade para, em processo administrativo, interpor recurso contencioso por ilegalidade e recurso de anulação de ilegalidade.
Na verdade, no projecto de lei do Partido Socialista é possível reconhecer uma maior preocupação com a elaboração sistemática da matéria processual, que seria comum a toda a regulamentação do direito de acção popular, mas, quando se refere à matéria que visa regulamentar, preocupa-se também com a que consta e que é citada, a título de exemplo, no artigo 52.º da Constituição, isto é, a saúde pública, a degradação do ambiente e da qualidade de vida e a degradação do património cultural. No entanto, o próprio preâmbulo do projecto de lei do Partido Socialista refere que o facto de se limitar a estes aspectos não significa que outros, posteriormente, não possam vir a ser regulamentados.
Daqui podemos concluir - e nisto, aliás, estaremos de acordo com a intervenção do Sr. Deputado Mário Raposo - que há, realmente, uma relação de complementaridade entre o projecto do Partido Socialista e o do Partido Comunista, na medida em que, ressalvadas as características especiais de sistematização do projecto de lei do Partido Socialista, o Partido Comunista apresenta um projecto que versa outras matérias complementares.
Sr.ª Presidente, Srs. Deputados: A matéria do direito de acção popular foi considerada pelo Prof. Gomes Canotilho como uma das dimensões mais relevantes para a eficácia dos direitos fundamentais; tanto basta para nos podermos congratular não só com estes dois projectos de lei mas também quanto ao facto de, segundo pudemos já verificar, haver um consenso de todas as bancadas no sentido da sua aprovação, na generalidade, sem prejuízo, naturalmente, de aspectos específicos poderem vir a ser discutidos, apreciados e modificados em sede de especialidade.
Aplausos do PCP, do PRD e de Os Verdes.
A Sr.ª Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Rui Macheie, que, para o efeito, além do tempo remanescente do PSD, dispõe de três minutos cedidos pelo PRD.
O Sr. Rui Machete (PSD): - Sr.ª Presidente, Srs. Deputados: Vou tentar circunscrever-me a algumas das questões mais essenciais.
Todavia, antes de fazê-lo, não quero deixar de referir o mérito das iniciativas do Partido Socialista e do Partido Comunista, que - digamos - ousaram irromper numa matéria que, até agora, tem sido dominada pelo silêncio.
Trata-se de uma contribuição que é importante e arrojada e, justamente por isso, é compreensível o tom em que foram apresentados os projectos e com o qual nos congratulamos. Isto é, foi um tom essencialmente de concitar esforços para que seja possível progredir nesta matéria.
Penso que, dentro desse clima, a Assembleia da República poderá dar um passo extremamente significativo numa zona tão delicada e importante como esta.
Por que é que esta zona é, particularmente, delicada? É-o, desde logo, pela circunstância de a acção popular, sobretudo pela forma como foi congeminada, de algum modo tocar na raiz da disponibilidade da tutela judicial dos particulares. Isto é, a forma como a acção popular foi arquitectada - porventura, é difícil fazê-lo de outra maneira - e as características genéricas da iniciativa legislativa, em particular a do Partido Socialista, levam-nos a ter atenção às soluções que são encontradas, porque elas dizem respeito não apenas a algo que é importante, que é a persecussão de interesses difusos, do interesse público e do interesse colectivo - e todos estes interesses estão um pouco amalgamados no projecto de lei-, mas também ao alargar a legitimidade para propor acções ou recursos nesta matéria, ela significa que, afinal de contas, uma das questões mais fundamentais dos direitos subjectivos, que é o problema da livre disponibilidade da tutela judicial, possa vir a ser, de algum modo, limitada.
E tanto é assim que alguns autores, como é o caso de Allorio, vêm considerar este tipo de processo como pertencendo à categoria dos processos de conteúdo objectivo e, naturalmente, rodeá-los de cautelas indispensáveis.
Repito: a forma exemplar como os Srs. Deputados Almeida Santos e José Magalhães apresentaram aqui os projectos leva a que esta não seja mais do que uma cautela a ter em conta. Não é, de modo algum, uma condenação!
Por outra parte, parece-me também importante que se tenha em consideração um outro aspecto do problema.
Em meu entender, o projecto de lei do Partido Socialista vem amalgamar duas coisas que, porventura, poderão ser distintas e deverão ser distinguidas. Uma diz respeito à acção popular propriamente dita e a outra diz respeito ao papel do Ministério Público.
Quanto à acção popular propriamente dita, penso que há significativos progressos a fazer. Porém, no que diz respeito ao papel do Ministério Público fora do âmbito do processo penal, tenho as maiores dúvidas quanto à introdução de limitações e precisões claras, visto o Ministério Público ser hoje uma figura, do ponto de vista processual, ambígua, porque ou acaba por poder defender os interesses dos recorrentes, dos autores ou dos réus, consoante as hipóteses que se colocam, ou apenas por ser um mero defensor da legalidade... tudo isto sem haver uma clara distrinça das razões, visto assumir papéis processuais tão diferentes. Por isso, penso que só ganharemos se conseguirmos introduzir «claridade» nesta matéria.
Por outro lado, penso que importa aprofundar o que - e de algum modo está já aberto caminho no projecto de lei do Partido Socialista - respeita aos interesses difusos. Na perspectiva deste projecto de lei, os interesses difusos dizem respeito, essencialmente, às deficiências da representação política, visto que são apresentados - aliás, na senda daquilo para que o texto constitucional também aponta - como um instrumento de participação democrática dos cidadãos; portanto, um reforço e, de algum modo, uma constatação dessa deficiência - o que, aliás, acontece em todas as democracias pluralistas -, esse reconhecimento de que não chegam os processos técnicos normais de representação política e de que há que encontrar outras fórmulas de atrair a participação dos cidadãos para a defesa dos interesses políticos fundamentais para que seja vivida a democracia.