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23 DE MARÇO DE 1990 1963

mente aqui acontece, e não só hoje por ser dia de um debate mais dedicado às questões da mulher—, saúdo a presidência de V. Ex.ª nesta Assembleia.
Aplausos gerais.
Ex.mª Sr.ª Presidente, Sr.ªs Deputadas, Srs. Deputados: O debate de hoje proporciona-nos o ensejo de colocar aqui as questões, os problemas e as discriminações que, na nossa sociedade, vitimam, em especial, a mulher portuguesa.
Em breves palavras, abordarei apenas um dos problemas mais preocupantes que se inserem nesse fatídico e trágico elenco.
E a prostituição a mais velha escravatura do mundo, quiçá a mais renitente às transformações sociais. «Questão tabu» ou «tema pouco digno de abordagens institucionais», no dizer de alguns, é fenómeno com entrada recusada nas estatísticas, problema tão velho quanto os valores morais que o produzem.
Filha da fome, do desemprego, da violação, da solidariedade esquecida, a mulher prostituta é um daqueles silêncios que gritam e que, até hoje, tiveram apenas o eco por resposta.
Admitamos que as sociedades que nos precederam, estruturadas sobre valores eternos, que guardavam no fatalismo do destino os problemas a que não queriam ou não podiam dar resposta, tivessem ignorado ou simplesmente reproduzido o fenómeno da prostituição, em razão das limitadas capacidades de compreensão por parte dos seus agentes políticos, dos valores a que as sociedades modernas conferem hoje estatuto de estruturadores do tecido social — a liberdade, a igualdade, a solidariedade, o direito à diferença, o respeito pela individualidade, o direito de participação política, entre outros.
Mas, hoje, a nossa sociedade, que a si própria se intitula de moderna, que leve o privilégio de construir e viver um tempo de paz, compreendidas que estão de novo as leis da natureza, recuperada que está a dignidade da pessoa humana, não pode, em nome dos valores que a enlormam, continuar a ignorar a chaga da prostituição, rcfugiando-se nos mesmos álibis de sempre. Não pode deixar a nossa sociedade de assumir a responsabilidade não só de reconhecer-se como responsável pela reprodução do fenómeno como, sobretudo, por encontrar as soluções que conduzam à sua total erradicação.
Sendo certo que a prostituição não é apenas um fenómeno nacional, não pode Portugal escudar-se na universalidade do problema para fugir às suas responsabilidades próprias.
O conhecimento profundo das causas objectivas e das condições que propiciam o aumento da prostituição são factores fundamentais para equacionar o problema, tendo em vista encontrar soluções. Não é nossa intenção fazer, hoje e aqui, esse debate.
No entanto, a Assembleia da República, com a dignidade que lhe confere o facto de ser a casa da democracia, a voz real de iodos os portugueses, desfruta de uma posição de privilégio para acolher o primeiro grande fórum de debate sobre a questão, cuja existência nos envergonha e desmente a modernidade do nosso viver social.
Nestes termos, Sr.ª Presidente, Sr.ªs Deputadas e Srs. Deputados, o meu grupo parlamentar fez hoje chegar à Mesa da Assembleia da República um simples projecto de resolução, que visa vincular a Assembleia da República ao compromisso solene de protagonizar, de organizar
e de incentivar um fórum nacional aqui, nas instalações da Assembleia, sobre a questão da prostituição que, como tive oportunidade de dizer, considero uma das formas mais renitentes, e que mais nos envergonham, de escravatura que persiste na nossa sociedade.

A Sr.ª Presidente: — Para uma intervenção, tem a palavra a Sr.ª Deputada Natália Correia.

A Sr.ª Natália Correia (PRD): — Sr. Presidente, Srs. Deputados: Neste debate não me ocorre melhor argumento para fundamentar, histórica e culturalmente, os direitos da mulher em Portugal do que vexar a decrépita misoginia oriunda da mentalidade burguesa que os desrespeita e, nesta Assembleia, ainda cobra hospedagem — e a extinção da Comissão da Condição Feminina é um exemplo —, recordando-vos, Srs. Deputados, o que esqueceis. E é todo um passado português que aqui torno presente em ilustres vozes masculinas que, ao génio das mulheres, renderam a mais rasgada das admirações.
Logo no século XVI, Rui Gonçalves, lente de Direito Civil, oriundo da ilha de São Miguel, o que me é, obviamente, motivo de orgulho, defende os «privilégios e prerrogativas que o género feminino tem por direito comum e ordenaçooens do reino, mais que o género masculino», num livro assim intitulado, em que reconhece levar a mulher decidida vantagem de ânimo e psique nas qualidades requeridas para a governação do reino.
Ainda no século XVI, dentro do ideário do humanismo cívico, Duarte Nunes de Leão, na sua Descrição do Reino de Portugal, enaltece os prodígios das mulheres que nessa época tinham grande eminência nas letras, e João de Barros, no seu Espelho de Casados, afirmando que as mulheres são tão hábeis e sabedoras quanto os homens, acrescenta: «e se me disserem que muitas o não são, digo eu que também há muitos néscios e desarrazoados».
Certamente que tão fervoroso feminismo tinha o seu fundamento numa plêiada de mulheres notáveis. Dispensando-me de evocar aquelas cuja fama logrou romper as sombras com que a crónica as envolveu — Joana Vaz, Públia, Hortênsia de Castro e outras —, recordo, das latinisias que precederam de 50 anos o círculo letrado da infama D. Maria, essa extraordinária Leonor de Noronha, discípula dilecta de Cataldo Parísio Sículo, animador na corte portuguesa de um movimento cultural de cariz renascentista, que nela diz ter encontrado uma coisa do céu, a sibila de cumas.
Pois terá sido, na opinião autorizada do camonista José Maria Rodrigues, na tradução, e acrescento por D. Leonor, da Crónica Geral, de Marcanlonio Cocei Sabellicus, e da Crónica Geral da Eneida, do mesmo autor, que Camões encontrou uma das fontes de Os Lusíadas.
Considere-se ainda que não só nas letras, mas também nas armas (o que não me entusiasma muito, mas é um facto!), se distinguiram as mulheres que, oriundas da linhagem de Brites de Almeida e de Deuladeu Martins, e prosseguida nas guerras da Restauração com Mariana Lencasire, e no século XIX, com a Maria da Fonte, protagonizaram, no século XVI, em Cafim, no Norte de África, c sobretudo nos cercos de Diu, um ardor na peleja que legendariamente se acendeu na bravura de Ana Fernandes, a celebrada «velha de Diu».
Mas, já entrando no século XVII, continuam a fazer-se ouvir as vozes masculinas que rendem louvores aos méritos intelectuais e artísticos e mesmo proféticos do sexo feminino. É D. Francisco de Portugal na sua Arte de Galantería, dizendo ser coisa assaz lúcida o estimar o que as mulheres dizem como profecias e oráculos.