960 I SÉRIE -NÚMERO 28
o triunfo da ideia que Sá Carneiro tinha para Portugal». Essa ideia era a de transformar o País numa «democracia de tipo europeu e ocidental». «Uma democracia onde a vontade do povo fosse soberana, onde vigorasse o primado da pessoa humana, onde se eliminassem as injustiças sociais sem perverter nem violar as liberdades individuais, onde a criatividade dos Portugueses se afirmasse plenamente.»
Sá Carneiro acreditou na vitória estratégica dessa democracia em Portugal e participou nos combates fundamentais pela sua instauração. Raros são os políticos democratas, no Portugal do século XX, a quem é legítimo reconhecer a coerência e a combatividade com que Sá Carneiro lutou pelo seu projecto para Portugal.
Ele sabia que Portugal não estava condenado à ditadura e que o povo português seria capaz de gerir equilibradamente a liberdade política e fazer dessa liberdade a base do desenvolvimento e do progresso social há tanto tempo adiados.
Ele entendeu, antes de muitos outros e nas alturas mais dramáticas, que o futuro de Portugal jamais estaria no colectivismo e que os Portugueses seriam capazes de viver à luz dos grandes princípios democráticos ainda há pouco consagrados na Carta de Paris para uma Nova Europa que foi assinada por 34 Estados.
Sá Carneiro foi um dos políticos que mais poderosamente marcaram a consciência de várias gerações de portugueses durante a vertiginosa década de 70. As suas excepcionais qualidades estão bem vivas na nossa memória e continuam a inspirar as nossas melhores energias. A sua grandeza mede-se pela influência que continua a ter 10 anos depois do seu trágico desaparecimento, pela enorme admiração que o povo português lhe tributa e pela respeitosa evocação do seu nome que está a ser feita por políticos de quase todos os quadrantes partidários.
Sá Carneiro, que tinha uma crença inabalável nas virtudes do povo português e respeitava as suas tradições, demonstrou uma franqueza temerária quando desafiou poderes sem legitimidade, mas foi um político com singular capacidade de antecipar problemas e adiantar soluções, que «tinha razão antes do tempo» e que sempre recusou o conformismo e as situações equívocas.
Como já afirmei noutra ocasião, o legado político de Sá Carneiro ultrapassou as fronteiras de uma organização partidária para se transformar numa memória colectiva e num património da história contemporânea de Portugal. Nesse sentido, o sentido em que triunfaram as suas ideias, todos os portugueses são herdeiros de Sá Carneiro.
Sá Carneiro foi um pioneiro das concepções mais adequadas à nossa sociedade. Ele afirmou a social-democracia portuguesa contra o autoritarismo de direita e contra o totalitarismo marxista. Foi Sá Carneiro o primeiro civil a profetizar abertamente, em Junho de 1974, que Portugal seria ingovernável sem normalização social e recuperação económica e que Portugal tombaria numa anarquia se as forças maioritárias da sociedade civil continuassem oprimidas pelo poder militar revolucionário.
Sá Carneiro defendeu a economia de mercado contra o colectivismo do 11 de Março. Lutou pela emancipação da sociedade civil contra o patrimonialismo e a tutela do Estado. Bateu-se pela independência nacional contra a interferência de potências estrangeiras nos nossos assuntos internos.
Sá Carneiro cedo intuiu que Portugal seria um país bloqueado sem a existência de um «contrato de legislatura» e de um governo maioritário, sem estabilidade e sem a continuidade estruturante de uma política.
Como Primeiro-Ministro, durante o breve mas marcante Governo a que tive a honra de pertencer, Sá Carneiro mostrou um profundo sentido de Estado e uma aguda percepção dos interesses nacionais. O poder político adquiriu com Sá Carneiro uma credibilidade que antes não tinha aos olhos dos Portugueses e a imagem de Portugal no mundo ganhou uma respeitabilidade que antes não existia.
Muito embora coarctado pela estrutura político-institucional remanescente da época revolucionária de 1974-1975, Sá Carneiro recusou-se a ser um mero gestor do sistema e governou activamente para transformar o sistema.
O Governo de Sá Carneiro estimulou a iniciativa privada, reduziu o peso do Estado na vida económica, aplicou a nova legislação agrária, enfrentando o colectivismo no Alentejo.
Na política externa, Sá Carneiro introduziu clareza contra as ambiguidades e as flutuações, catalizou o processo de adesão de Portugal à Comunidade Europeia, lançou as sementes de uma política de Estado para a África de língua portuguesa, baseada no respeito mútuo e na não ingerência.
Sá Carneiro não era um político da demagogia nem um vendedor de falsas promessas; era um político da verdade e das realizações concretas.
Foi um político de grande paixão por Portugal e com um forte sentido da identidade nacional, um homem corajoso e com grandeza de carácter, um visionário cuja clarividência e inquietação não provinham do mero jogo político, das manobras de conjuntura ou das paixões menores, mas da sua ligação essencial ao povo e à Pátria.
Sá Carneiro trouxe à vida portuguesa o sentido dos grandes desígnios, a força das convicções por que vale a pena viver e vale a pena lutar. Ele foi melhor intérprete de uma geração nascida para a política no final da década de 60 e que sonhou com um Portugal livre, renovado e próspero. Comungou a esperança do 25 de Abril, lutou contra o totalitarismo de esquerda e a ilusão dos igualitarismos e acreditava que, mais tarde ou mais cedo, Portugal encontraria o caminho da modernidade.
A tragédia de Camarate impediu que Sá Carneiro continuasse o seu combate político. Mas a obra que ele deixou incompleta serviu de inspiração aos portugueses que, em 1985, e depois em 1987, apostaram na estabilidade política e no «contrato de legislatura», que ele considerava uma condição decisiva para arrancar Portugal ao marasmo e ao subdesenvolvimento.
Foi assim possível dar continuidade ao trabalho de Sá Carneiro pela renovação nacional. E hoje, graças a uma política séria e consequente, e como é internacionalmente reconhecido, Portugal deixou de ser um país bloqueado e vive um ciclo de modernização e de progresso.
Infelizmente, apenas nove anos depois da morte de Sá Carneiro é que Portugal conheceu uma Constituição plenamente democrática, que nos coloca em plano de igualdade com as outras democracias europeias.
Mas o desmantelamento do 11 de Março não se limitou a essa «reforma das reformas» que foi a revisão constitucional. Foi também retomada, com êxito, uma das grandes lutas de Sá Carneiro: a redução do peso do Estado e a libertação das energias criativas da sociedade civil. Gradual, mas firmemente, criou-se espaço de afirmação para a iniciativa privada nacional.
Houve que ser inflexível e enfrentar ventos adversos para reduzir a estatização da economia que tolhia a competitividade dos Portugueses na Europa comunitária.