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962 I SÉRIE-NÚMERO 28

Era de uma férrea coerência.
Dotado de personalidade deslumbrante, a história da sua vida só poderá ser correctamente apreciada quando assentar a poeira, quando dispusermos de uma análise mais reflectida; quando pudermos realizar a síntese completa do que disse e do que fez, inserida no respectivo momento histórico e apoiada pelas reacções pessoais dos que assistiram ao fervilhar da sua mente.
Por isso me doem algumas apropriações e a invocação do seu nome e da sua obra, quantas vezes feitas por alguns que, em vida, foram para ele profundamente injustos, ou as tentativas de uma mistificação para proveito próprio.
Sim, Sá Carneiro foi um Homem com H maiúsculo.
Passados 10 anos sobre aquele fim de tarde de 4 de Dezembro de 1980, afirmo, com toda a humildade, que senti as maiores dificuldades em encontrar palavras para, como Presidente da Assembleia da República, me dirigir à Câmara nesta sessão solene.
O meu desejo era relatar sentimentos, vivências e fragmentos que ajudassem à compreensão da personalidade de Sá Carneiro. O meu desejo era falar do homem com quem privei e que em mim cinzelou marcas indeléveis que trago comigo. É que tudo quanto se passava com Sá Carneiro adquiria tal força, intensidade e pujança que era impossível deixar indiferente quem quer que fosse.
O brilho do seu olhar radiografava raciocínios, descortinava dúvidas ou intuições. O seu pensamento veloz desarmava os incautos. O timbre da sua cordialidade deixava registo.
Minhas senhoras e meus senhores: Sei que falo para quem o estimava e o admirou sem limites e também para quem o combateu com ardor, senão mesmo com paixão.
Tenho, porém, a segura convicção de que Sá Carneiro, no seu generoso espírito democrático, respeitava por igual os que o apoiavam ou os que o combatiam, desde que o fizessem com honradez e lealdade.
Mais um sinal da sua personalidade superior.
Daquele corpo franzino agigantava-se uma estatura intelectual e ética invulgares. Que atingia uma vontade e uma força firme e robusta, quando se empenhava na defesa do bem comum, sempre norteado pelo valor do homem.
Com uma penetrante inquietude, que ele próprio definiu: «Recuso-me a aceitar que, ao contrário de outros povos, não possamos ser capazes de conciliar a liberdade com a ordem, o progresso com a segurança, o desenvolvimento com a justiça.»
Recusa e resistência que permitem compreender a força anímica que fez dele um grande homem de Estado. E que o levaram, na política e na vida, a uma sucessão de combates. Mas sempre arreigado na energia de quem crê e quer e de quem se impacienta no desejo de conseguir.
Ao recordarmos, neste «Claustro», o 10.º aniversário do trágico desaparecimento do Primeiro-Ministro do VI Governo Constitucional e ao enaltecer a sua figura quero também deixar uma palavra de homenagem e saudade aos que, naquele momento, com ele encontraram o fim do percurso na vida: Adelino Amaro da Costa, António Patrício Gouveia, Snu Abecassis e Manuela Amaro da Costa. E ainda os pilotos do avião, Jorge Albuquerque e Alfredo de Sousa.
Entre todos estes, destaco Amaro da Costa. O parlamentar brilhante e fundador e construtor do Centro Democrático Social. O estadista que, então, ocupava a pasta da Defesa Nacional, devotado à edificação de um Estado democrático e ao enquadramento dos poderes, incluindo o militar, na quadro de uma democracia ocidental.
Minhas senhoras e meus senhores: Ressoam ainda neste hemiciclo as palavras corajosas de Sá Carneiro, que aliás sempre teve, e que o foram particularmente naquele ano de 1971, tempo de ditadura:

Não há Portugal sem portugueses: toda a nossa história é do homem e não de pedras, sejam elas de catedrais ou de palácios... São eles (os homens), os do passado, os do presente e os do futuro, que constituem a Pátria. Toda a nossa ordem moral assenta no valor absoluto da pessoa humana [...] fundamento do Estado, fim e limite último do poder político.

Como se ouvem ainda as palavras e se alcançam os actos que punha no respeito pela dignidade e importância da vida parlamentar. Ele, que a tinha vivido em todas as suas condições e facetas.
Honrava os direitos das oposições; soube ser oposição. E sempre se esforçou por melhorar as condições de trabalho da Assembleia da República e dos deputados.
Tinha um profundo respeito pelas instituições democráticas e pelo correcto equilíbrio de poderes. Sobre elas discorria e teorizava. Sabia dizer e ouvir.
Por isso o víamos com frequência traduzir, com irrequietude e frontalidade, o que, no seu entender, afrontava essa postura e zurzir com veemência, apesar da sua generosidade, o que repugnava ao seu pensamento.
E, em particular, os resquícios de poderes, atitudes, organizações ou legislação que persistiam para além do tempo e que entravavam a institucionalização de um verdadeiro Estado democrático e europeu, na melhor tradição e contexto da Europa livre e comunitária.
Como em muitas outras situações, esta sua concepção da política nem sempre foi devidamente entendida. Mas dele são estas palavras, ditas nesta Casa em 12 de Janeiro de 1980:

O Governo não porá em causa a legitimidade constitucional e popular de cada órgão de soberania, tal como decorre da lei fundamental. Esta atitude [...] é assumida em nome do respeito pela legalidade e do interesse nacional. As instituições do Estado têm de se respeitar mutuamente e entender-se, nos limites estabelecidos pela Constituição.

Foi neste quadro que nunca se recusou a emitir as suas opiniões sobre o comportamento dos diferentes órgãos de soberania, ou dos seus titulares. Mas sempre no respeito das regras e da vivência democráticas.

O que o levou certo dia a dizer-me que, se fosse obrigado a deixar o combate no posto de Primeiro-Ministro face ao resultado das eleições presidenciais, que dentro em pouco iriam ter lugar, não deixaria cair os braços. Continuaria a lutar. Discorreu longa e argutamente sobre o que pensava fazer. Homem de convicções.
Minhas senhoras e meus senhores: Francisco de Sá Carneiro era dotado de uma bagagem cultural sólida, de uma formação humanista e de uma inteligência perspicaz e judiciosa. Nunca ignorou o contexto e realidade nacionais e a matriz do povo. Repudiou ser mero importador de ideias e modas. Abraçou cedo a social-democracia, que transmitiu ao PPD/PSD, partido de que foi o seu primeiro fundador. Empenhou-se, num modo próprio, na aplicação das suas bases ideológicas e doutrinárias.
No seu vocabulário político, as palavras dominantes exprimem valores. São elas: liberdade, democracia, justiça social, igualdade de oportunidades. E, acima de tudo: a