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1904 I SÉRIE -NÚMERO 59

Vozes do PS: - Muito bem!

O Orador: - Estou a ouvir Napoleão - sempre ele! - expedindo um recado aos seus legislas: «Acabem depressa esse Código Civil a que quero ligar o meu nome».
Recuso-me também a levar a sério a acusação de «leviandade» que o Sr. Primeiro-ministro fez aos que lhe criticam inércias e atrasos. Tem todo o direito de querer reflectir durante mais quatro anos sobre as conclusões do estudo da viabilidade do Alqueva que decidiu encomendar, depois de ter reflectido, por igual período, sobre a decisão da encomenda. Para elefante branco basta Sines, esse «paquiderme» nascido da anca dos levianos Salazar e Caetano.
Perdoareis, pois, que de nada disso cuide. Hoje as minhas preocupações são de outra ordem. E centram-se nas possíveis perversões, ou já consumadas, do nosso regime democrático.
A mais preocupante de todas elas há-de consistir nesta espécie de regime de assembleia virado do avesso, com o legislativo «sequestrado» pelo executivo: um subtil sequestro mental adormecedor da consciência cívica, que devia animar vontades dotadas de poder de decisão e que, bem ao contrário, estimula aquela espécie de indiferentismo resignado em que Garrett via o maior inimigo da liberdade.
Não julgo concretamente ninguém: «guerra aos factos, paz aos homens» é o lema que peço emprestado às Farpas. Mas coloco a mim próprio e aos meus colegas parlamentares estas perturbamos indagações: desde que nesta Casa impera uma maioria que age como longa manus do Executivo, tão dócil à sua vontade que abdicou da própria, temos sido um verdadeiro Parlamento democrático? Se, na conhecida definição de Sérgio, a democracia é, sob o ponto de vista político, «o regime em que os governos são fiscalizados pelos representantes da opinião pública», temos sido uma genuína democracia? As leis que são o produto final da vontade de uma maioria parlamentar, que reflecte a vontade de um partido, que traduz a vontade da sua direcção política, que espelha a vontade do seu líder, são ainda a expressão da vontade geral? A tudo presidindo um discurso político que desvaloriza a política, os partidos, o Parlamento e até o exercício do voto, além de uma prática política que secundariza a concertação social, a participação política e a busca de consensos, preside acaso a tudo uma ideologia ou sequer um pensamento democrático? Pode a democracia, sem deixar de sê-lo, confinar-se ao seu próprio ritual, tendo a retórica por vedeta?
Fiscalização do Governo pelo Parlamento vai para quatro anos que não há! De evidência em evidência, desembocou-se nessa explosão de mau humor autoritário que foi o fechamento, antes do termo, de um inquérito incómodo. Não está sequer, ao que parece, afastado o risco de uma reincidência ultrajante em face da sua repetição impósita.
Fiscalização da acção legislativa do Governo, pela via da ratificação dos seus decretos, deixou de haver! Sirva de exemplo esse aborto legislativo que foi a conversão por decreto do visto prévio do Tribunal de Contas em vício post. O prévio era incómodo, arredou-se a incomodidade.
Diálogo parlamentar no respeito das críticas e sugestões da oposição só nas precedentes legislaturas. Continuam a ouvir-se no hemiciclo as veemencias da diatribe ou os floreios do repique. O folclore parlamentar subsiste. Mas, na hora de votar, é proibido ter razão. Sirvam de exemplo as óbvias inconstitucionalidades, geradoras de graves distorções eleitorais, do Estatuto definitivo da Madeira, a que a maioria assegurou passaporte.

Vozes do PS: - Muito bem!

O Orador: - Debalde pregámos contra elas. O Presidente do Governo Regional linha acertado o voto da maioria com o Primeiro-Ministro. É típica dos regimes rebeldes ao ethos democrático a solução dos problemas «chefe a chefe».
O resultado é conhecido: uma inconstitucionalidade judicialmente declarada e, em consequência, engolida; um veto político e a alternativa desairosa de lhe engolir a causa ou de a Madeira continuar sem estatuto definitivo; um Presidente em risco de ficar sem as chaves da cidade do Funchal, face à alternativa arreliadora de ter de recorrer a um pé-de-cabra,...

Vozes do PS: - Uma vergonha!

O Orador: -... mais uns tantos desmandos verbais do «Grande Chefe Zulu», que, quando se irrita, não respeita o sagrado.

Aplausos do PS e dos deputados independentes Jorge Lemos e José Magalhães.

De um poder de que, por perversão antidemocrática devem pessoal, não é de esperar mais do que um respeito relativo pelas garantias constitucionais e pelos direitos dos cidadãos. Sirva de exemplo a tentativa de açaimar uma suculenta fatia dos direitos à informação e ao acesso às fontes contida no projecto destinado a regular o segredo de Estado.
De um poder que, por fidelidade doutrinária, perfilha um modelo de desenvolvimento tecnocrático e fanático do crescimento, prisioneiro de performances que idolatram o «mais» em detrimento do «melhor» e não deixam ao indivíduo margem para destino diverso do que lhe oferece a ordem existente, não seriam de esperar mais altos voos do que a gestão corrente do dia que passa. Por isso, não há sinais de preocupação com a mediocriadade dos resultados obtidos em lermos de construção do futuro, nem de angústia em face das incógnitas deste fim de século.
Indisfarçáveis são, pelo contrário, as agressões do optimismo irresponsável do discurso oficial, impante de satisfação auto-sustentada. Sirva de exemplo a ausência de um verdadeiro debate sobre o projecto europeu ou sobre o esboço da aldeia planetária, com tudo o que isso tem a ver-já amanhã! - com o nosso destino colectivo ou o futuro de cada um de nós.

Vozes do PS: - Muito bem!

O Orador: - Que Europa e que mundo, exigidos pela crescente interdependência de tudo e de todos, eis o que constitui, avant la lettre, para os nossos responsáveis, o primeiro dos «segredos de Estado»!
Aparentemente, a actual maioria cavalga o poder, mas não o dirige. Deixa-se ir, tanto quanto possível, na cola de outros, que dirigem, com rédea curta, a respectiva cavalgadura. A esse respeito, vai findar um mandato perdido. Recebemos milhões para a reestruturação da nossa agricultura e aí está ela, fragilizada e em pânico, no temor da panela de ferro com que em breve terá de iniciar a viagem da concorrência. Recebemos milhões para a reestruturação da nossa indústria e aí está ela, sectorialmente exangue e globalmente impreparada para os desafios de uma competição desigual.