2248 I SÉRIE - NÚMERO 71
A Constituição vigente propõe uma síntese consentânea com o seu núcleo axiológico fundamental: os trabalhadores da Administração Pública são destinatários dos direitos e deveres que se associam à condição de trabalhador subordinado; no exercício das suas funções, esses trabalhadores estão exclusivamente ao serviço do interesse público; o interesse público corresponde ao que como tal é definido, nos termos da lei, pelos órgãos competentes da Administração, no quadro de valores que decorre dos princípios de direito e do programa constitucional.
Resulta do exposto que a tensão possível entre estas premissas conduz à necessária admissibilidade da densificação de posições jurídicas constitucionalmente consagradas, entre as quais as de liberdades de trabalho e de profissão.
A concordância prática entre os valores constitucionais relacionados, por um lado, com os direitos dos trabalhadores e, por outro, com a garantia da imparcialidade e da nacionalidade da Administração terá, então, designadamente nos termos do n.º 5 do artigo 269.º da Constituição, de ser realizada através de acto legislativo, e nos estritos termos postulados por cada um dos valores em causa.
É essa, justamente, a ratio da proposta que o Governo submete a esta Assembleia.
A definição das incompatibilidades a que se encontram sujeitos os funcionários e agentes da Administração Pública, enquanto tais, ou seja, aquelas que promanam directamente deste estatuto, espraiai-se hoje por diversos diplomas, sem que essa dispersão signifique uma cobertura exaustiva do universo a considerar, pelo contrário, essa disseminação de preceitos traduz, apenas, a falta de um enquadramento sistemático e exaustivo da matéria o que comporta, desde logo e por si só, efeitos negativos.
Tais lacunas e dispersões em sede de incompatibilidades permitem a constituição de situações passíveis de prejudicar os valores em causa, criam desigualdades objectivas em termos de estatuto e originam incertezas e dificuldades na aplicação do próprio direito existente.
Por outro lado, encerram também uma contradição com o desígnio do legislador constituinte, pois, na verdade, e conforme reconhece a doutrina constitucionalista, o n.º 5 do artigo 269.º da lei fundamenta] parece apontar para o estabelecimento de um verdadeiro estatuto de incompatibilidades, no qual se sopesem exaustivamente as coordenadas constitucionais que antes enunciámos e se defina um tratamento completo e sistemático das limitações que decorrem da assunção da condição de funcionário ou agente da Administração Pública.
Por isto mesmo, o Governo, no programa apresentado e discutido nesta Assembleia, assumindo que «a Administração Pública pode e deve constituir-se como vector estratégico de desenvolvimento e progresso e de reforço dos direitos de cidadania e de realização da justiça», se propunha insistir no reforço dos «valores fundamentais da função pública», tendo em vista «assegurar rigor e profissionalismo». E, como também aí se afirmava, «o Governo aposta assim numa administração qualitativamente diferente, uma administração ao serviço da comunidade e do desenvolvimento, apoiada em valores de serviço público, na mobilização e dignificação da função pública». Disso é testemunho a proposta que agora discutimos.
Desenhando, a traças muito rápidos, as linhas caracterizadoras do regime que o Governo pretende aprovar ao abrigo da autorização a conceber por esta Assembleia, cabe referir quatro aspectos fundamentais.
Em primeiro lugar, a proibição do exercício, em regime de acumulação, de actividades concorrenciais com as que o serviço a que o trabalhador pertence desempenha. Trata-se, neste caso, de uma regra que diríamos conatural à integração do trabalhador numa organização dirigida à prossecução de fins específicos. Se no direito do trabalho a regra, decorrente do princípio da confiança, tem a ver com o cabal aproveitamento da prestação que o trabalhador realiza em favor do empregador, já no direito da função pública, considerando a finalidade própria da organização laboral, está em causa a cabal prossecução do interesse público, nas condições mais favoráveis para os administrados. Esta mesma ideia leva a que se estenda a proibição ao exercício de actividades instrumentais relativamente aquelas que o trabalhador exerce como funcionário ou agente.
Depois, como segundo intento, a proibição, também óbvia em si mesmo, de o funcionário ou agente beneficiar de actos ou contratos em que intervenha ou em que participem trabalhadores sob a sua dependência ou influência. Procura-se, como é notório, garantir, a todo o custo, a imparcialidade dos órgãos e agentes da Administração, afastando circunstâncias passíveis de comportar perigo acrescido de lesão a esse imperativo.
Em terceiro plano, regula-se o procedimento de concessão de autorizações para o exercício de actividades privadas em regime de acumulação, dispondo-se adequados mecanismos de fiscalização sucessiva do exercício desta autorização. O sentido dos procedimentos subjacentes à concessão da autorização é, evidentemente, o de propiciar uma maior clareza na actuação dos órgãos da Administração e, ao mesmo tempo, introduzir a correlativa responsabilização dos titulares de cargos dirigentes.
Por fim, pretende-se que o regime contemple garantias de funcionamento, através da imposição de deveres de comunicação, do estabelecimento da nulidade dos actos praticados em desconformidade com as regras enunciadas e da previsão de mecanismos disciplinares.
Trata-se, pois, e em síntese, de um regime que privilegia a transparência de procedimentos e a prevenção de situações potencialmente danosas, em detrimento de uma visão de cariz essencialmente repressivo.
Sr. Presidente e Srs. Deputados: O sentido último do regime normativo que vamos agora discutir visa alcançar a consagração do melhor direito em ordem a garantir a absoluta isenção da Administração Pública, para que o rigor na isenção seja o rigor da isenção.
Aplausos do PSD.
O Sr. Presidente: - Para pedir esclarecimentos, estão inscritos os Srs. Deputados José Magalhães, Alberto Martins e Raul Castro.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Presidente, Sr. Secretário de Estado, tínhamos grande curiosidade em saber quem é que, da parte do Governo, viria defender esta proposta de lei. V. Ex.ª deu-nos, implicitamente, a melhor das respostas.
Não se ofenda, mas V. Ex.ª veio defender esta proposta porque não estão cá nem a Sr.ª Secretária de Estado da Modernização Administrativa nem a Sr.ª Secretária de Estado Adjunta e do Orçamento, que são as entidades que normalmente, quanto à função pública, x encarregam desta matéria. Portanto, V. Ex.ª cumpre aqui um dever, que é seu estatutariamente, de fazer a apologia de coisas que não têm defesa.
De facto, é essa a tarefa que politicamente lhe está adstrita e como V. Ex.ª não é capaz de recusar nada ao