28 DE MAIO DE 1993 2429
constitucional de 1976, decorreram os mesmos 17 anos que leva de atraso a instituição das regiões. Havia, em todo o caso, uma desculpa: era um reconhecimento sem contornos jurídicos. Mas essa dificuldade morreu às mãos da revisão de 1989. Sabemos agora claramente o que nos é cometido: instituir um direito de acção, com antecipação de algumas das formas do seu exercício, com vista à prevenção, à cessação ou à perseguição judicial das famílias de infracções que a Constituição define - contra a saúde pública, o ambiente, o património cultural.
Quem diz infracções, sem as qualificar jurídica e processualmente, diz todas as infracções - do foro penal, civil ou administrativo- subsumíveis na defesa dos direitos, interesses e valores que a Constituição quis por este meio proteger.
Daí que no projecto de que fui autor, contrariamente ao do Grupo Parlamentar do PCP, se consagre que o direito de acção popular «pode traduzir-se no exercício de qualquer dos direitos de acção previstas na lei civil, penal ou administrativa». Não podia ser de outro modo, sob pena de amputação do âmbito que a Constituição confere ao direito.
Daí a fuga à tentação - que a espaços se desenha - de nos confinarmos por agora ao estreito espaço procedimental administrativo, onde a consagração do direito tem décadas e é inclusive anterior à actual Constituição da República. Essa visão, que diria minimalista e sem arroubo, equivaleria a um recuo, não a um avanço. E é de avançar que precisamente se trata!
Está, pois, a maioria, mais do que nunca, habilitada a tomar uma posição sem ambages: ou para viabilizar o projecto, como matriz aberta à necessária discussão e reformulação na especialidade, ou para o chumbar, já não pela obstrução mas pelo voto. Aceito tudo menos voltar a ser iludido.
Vozes do PS: -Muito bem!
O Orador: - Para os menos familiarizados com a acção popular, direi que se trata de um direito de acção que a Constituição confere a todos - cidadãos ou associações de defesa dos interesses em causa - com vista, repito, à prevenção, à cessação ou à perseguição judicial de infracções contra a saúde pública, a degradação do ambiente e da qualidade de vida e a degradação do património cultural ou à efectivação da correspondente responsabilidade civil.
Este direito de acção não tem necessariamente de ser acolhido pela lei ordinária em todas estas áreas de interesses, nem apenas nelas. A enumeração da Constituição é exemplificativa. Declaro desde já que estamos abertos a consagrá-lo noutras áreas igualmente relevantes, nomeadamente na área da defesa dos direitos, liberdades e garantias. Pareceu-nos, no entanto, que se impunha avançar com cautela, ficando-nos agora pela exemplificação constitucional. Há que capitalizar experiência nos domínios em que se a não tem.
Como bem se vê, o legislador constitucional privilegiou interesses que são de todos, pelo que bem se justifica a sua defesa por todos. A Constituição quis generalizar a defesa de interesses que são gerais ou, se se preferir, colectivizar a defesa de interesses que são colectivos.
Tradicionalmente, essa defesa competia ao Estado, mas, perante a emergência de novos direitos - dos trabalhadores, dos consumidores, do ambiente -, viria a colocar-se a pergunta irresistível: porquê só ao Estado? Não é verdade que a democracia moderna se reclama de uma maior participação dos cidadãos?
Daí a tentação, com aflorações nas class actions dos Estados Unidos da América, nas «acções de grupo» da França, no «recurso colectivo» do Quebec, de ultrapassar o Helesponto da típica acção a dois, com a só correcção, ainda assim restrita, da figura da coligação de autores ou de réus.
Para quê ir lá fora? Mesmo no nosso direito, de há muito têm assento no Código Administrativo - sem que ao próprio Salazar fizessem erisipela - casos de acção popular em que ao munícipe é assegurado um direito de defesa, nomeadamente por via de recurso, de determinados interesses municipais ou colectivos. E as leis que regem a defesa dos consumidores e do ambiente e qualidade de vida caíram, mais recentemente, na tentação de enveredar por aí.
O Código do Procedimento Administrativo, recentemente publicado, veio agora confirmar essa extensão da clássica figura da legitimidade processual confinada aos titulares de direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos - titulares, em suma, da relação material controvertida - aos «cidadãos a quem a actuação administrativa provoque ou possa previsivelmente provocar prejuízos relevantes em bens fundamentais como a saúde pública, a habitação, a educação, o património cultural, o ambiente, o ordenamento do território e a qualidade de vida», bem como aos «residentes na circunscrição em que se localize algum bem do domínio público afectado pela acção da Administração». Esta extensão é igualmente assegurada «às associações dedicadas à defesa daqueles interesses e aos órgãos autárquicos da respectiva área», desde que, naqueles casos como nestes, esteja em causa «a protecção de interesses difusos».
Que interesses vêm estes a ser? Os interesses colectivos ou de grupos cujo universo de titulares seja indefinido, embora definível em certos termos. Dou como exemplo os interesses lesados por uma fábrica que despeja num rio efluentes tóxicos, mata a fauna fluvial e impede que as populações ribeirinhas nele pesquem, nele se banhem ou captem nele a água da sua rede de abastecimento domiciliar. Há aqui uma ilícita lesão de interesses, mas é indefinido, embora definível em certos termos, o universo dos respectivos titulares. Estão difundidos por uma mais ou menos incerta área ou unidos por uma característica comum. São titulares de direitos, por isso rotulados de difusos.
Se bem atentarmos, a lesão é idêntica para cada um deles: a mesma causa, o mesmo causante, o mesmo efeito, igual ou semelhante o dano causado e recebido. Isolado, este dano pode não justificar uma reacção individual; somado, o prejuízo é ou pode ser enorme.
A que título obrigar cada lesado a intentar uma acção com vista a obter um resultado que satisfaz por igual cada um dos outros? Agrupando ou concentrando as lides, aceitando que um só possa litigar por todos, quer para prevenir a instalação da fábrica, quer para a condicionar a operar sem poluir, quer para, em última instância, a encerrar ou apenas para concretizar o correspondente dever de indemnizar, estendendo a todos, em certos termos, os efeitos do caso julgado, alcançam-se os seguintes ganhos: economia de processos; economia de julgamentos e decisões; economia de custos; economia de tempo; reforço de eficácia; reforço da desejável participação democrática dos cidadãos numa democracia que se quer participada; protecção da parte económica e socialmente mais fraca; em suma, racionalidade processual.