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2430 I SÉRIE - NÚMERO 76

Com efeito, se instruir e julgar processos é um serviço público dispendioso, quanto menos processos menor dispêndio; se a eficácia de uma decisão se estende a todos os casos paralelos, poupam-se processos e decisões e multiplica-se a eficácia; se cada juiz tiver de julgar menos casos, as suas decisões serão mais prontas e eventualmente mais justas; se estendermos a todos um direito de acção que agora é de cada um, alargaremos o acesso à justiça e a participação dos cidadãos na efectivação dela e, em vez do cidadão isolado e fraco em face da poderosa multinacional poluente, mixordeira, predadora ou tóxico-difusora, teremos a força somada de muitos fracos; se a dimensão atomizada da lesão é em regra negligenciável, a soma de muitas pequenas lesões pode atingir a catástrofe.
São assim de fácil compreensão as vantagens da superação da concepção individualista do processo e a ultrapassagem da clássica acção a dois. Assim sendo, o que se receia?
Receia-se, antes de mais, o arrojo de inovar. O direito é, por definição, conservador; a lei tende a ser fixista; a doutrina, essa, tende a ser seguidista.
Só assim foi possível que, estando nós a 2000 anos da civilização romana, o edifício conceptual do seu direito seja de ontem relativamente ao nosso.
Porque o efectivo exercício do direito de acção popular implica a revisão de conceitos jurídicos bimilenares, os mestres do direito torcem-se nas suas cátedras e colocam dificuldades, tal como o sapiente Rui Machete agora expendeu as suas. Conheço-as uma por uma, até porque tive de contomá-las.
Primeira dificuldade: se um só pode litigar por muitos, que faremos do clássico conceito de legitimidade processual, umbilicalmente ligado a um interesse pessoal e directo em litigar? A solução encontrada foi esta: abre-se para ele uma excepção em atenção a realidades a que a sociedade romana não foi nem razoavelmente podia ter sido sensível.
Segunda dificuldade: se um só pode litigar por muitos, como fazer de conta que estes o incumbiram disso ou em qualquer caso se resignam a isso? Que faremos da clássica figura do mandato representativo? É também possível uma solução, embora envolva riscos que são o preço das vantagens a conseguir: começa por se presumir em cada um o acordo implícito em que outrem litigue por ele e em sua representação e dá-se a todos a faculdade de se excluírem desse implícito mandato - ou se excluem, e ficam de fora, ou se não excluem, e a representação funciona com todos os seus efeitos normais.
Terceira dificuldade: se um só pode litigar por muitos, como gerir os efeitos do caso julgado? Em caso de ganho de causa, tudo bem, todos ficarão contentes por beneficiarem do mesmo efeito, ou seja, do mesmo resultado. Mas, em caso de decaimento, resignar-se-ão a não poder intentar eles próprios, com a esperança de ganhá-la, a acção que aquele perdeu? É este, sem dúvida, um dos constrangimentos mais embaraçosos. As cautelas com que entendi rodeá-los são duas: fazer intervir o Ministério Público como autor principal, como garantia contra o risco de um pleiteamento negligente, incapaz ou até concertado com a outra parte, e conferir ao juiz excepcionais poderes para definir o alcance do caso julgado em função das especificidades do caso concreto.
No exemplo de há pouco, o juiz normalmente alargaria a eficácia do caso julgado em que arbitrasse uma indemnização a pagar pela empresa titular da fábrica poluente a todos os demais lesados por idênticos dano emergente e lucro cessante.
O que se não pode é colectivizar o direito de acção sem uma maior ou menor colectivização dos seus efeitos. Mas tranquilizemo-nos: em regra, não será um só, mas um grupo de lesados, a enfrentar o potentado poluidor e a perda individual do direito de acção por todos os não intervenientes, mas, apesar disso, representados, quando isolada, não é em regra significativa. O que conta é o somatório das lesões.
Estas são, do ponto de vista da necessária heterodoxia conceituai e doutrinária, as principais dificuldades. Mas há outras menores, como é o caso do regime de custas. Se submetermos o exercício da acção popular ao caríssimo regime normal de custas judiciais, condenamo-lo a figura de retórica.
Daí a solução proposta: isenção de preparos; isenção de custas em caso de êxito, ainda que parcial; condenação em custas, fixadas entre um décimo e metade segundo o prudente arbítrio do julgador, em caso de total sucumbência. Pareceu-me uma solução de bom aviso, que nem desestimula a iniciativa da acção, nem anima a litigância sem motivo sério.
É ainda o caso da dificuldade na fixação da indemnização correspondente a um prejuízo colectivo e, sobretudo, na sua distribuição, nomeadamente em caso de lesão de interesses difusos. Cabe aqui, também na economia do nosso projecto, um papel reforçado ao julgador. Faz apelo aos conceitos gerais de responsabilidade objectiva e subjectiva, prevê a possibilidade de ser exigido um seguro de responsabilidade civil como condição de exercício de uma actividade portadora de risco anormal, define os titulares do direito à indemnização e admite, no caso de interesses difusos, o recurso à divisão ou rateio entre os lesados segundo critérios de equidade a adoptar pelo tribunal em certos termos.
O projecto consagra, aliás, outros casos de sobreposição de juízos de equidade a critérios de legalidade estrita e outras áreas de alargamento excepcional dos poderes do juiz, inclusive de iniciativa própria em matéria de recolha de provas, sem vinculação à iniciativa das partes ou à matéria alegada.
Por último, para só destacar o principal, estabelece-se o princípio - que se tem por salutar no exercício da acção popular - da prevalência das preocupações preventivas sobre as repressivas ou indemnizatórias.
É tudo isto que infunde receio aos patriarcas de uma rotina jurídica por séculos inveterada. O salto é por demais ousado para que não vacilem as colunas do templo, mas não me parece que o legislador constitucional se tenha arreceado disso. Parece-se-me, bem ao invés, que nos determinou que déssemos o salto. E o que custa experimentar?
Não podemos é cultivar a ambiguidade de querermos e não querermos a acção popular. Todos reconhecemos a natureza epidémica de certas lesões típicas das sociedades modernas. Todos estamos preocupados com a gravidade das lesões ecológicas que ameaçam degradar o Planeta até à extinção da vida e com a leviandade e irresponsabilidade das agressões à saúde pública, perpetradas de gorra com o mais desenfreado consumismo. Todos receamos que o nosso património cultural feneça às mãos de patos-bravos sem escrúpulos e sem cultura.
Mas, face a esses e outros riscos do tempo moderno, detemo-nos perante perfeccionismos de técnica jurídica tão velhos como o Arco de Constantino e, aparentemente sem