3070 I SÉRIE - NÚMERO 95
vergências em relação a temas actuais e, consequentemente, à inconveniência de mobilizar um processo jurídico-político tão importante como o da revisão para dirimir crises de pequena monta.
Vejamos cada uma das críticas de per si.
Quanto à primeira, não pode certamente negar-se a conveniência de a opinião pública se interessar e discutir as opções relevantes em matéria de relações entre o poder e os cidadãos e quanto à organização política, de modo a que o seu voto favoreça os partidos defensores de soluções que melhor traduzam o saber e pensar da maioria do povo. Era mesmo desejável que isso tivesse acontecido no passado com maior frequência e intensidade, pois evidenciaria que a Constituição estava suficientemente interiorizada e viva na nossa convivência e preocupações. Sabe-se, aliás, que as eleições para a Assembleia Constituinte significaram a rejeição do totalitarismo comunista mas que o mandato conferido não foi suficientemente explícito para evitar a consagração do colectivismo marxista como um dos princípios estruturantes do compromisso constitucional de 1976.
Vozes do PSD: - Muito bem!
O Orador: - Mas, se é útil que os temas constitucionais menos pacíficos ou mais inovadores sejam, como problemas políticos importantes, debatidos na campanha eleitoral, sejamos claros: os Deputados têm, pela Constituição, toda a legitimidade para realizar revisões e propor soluções, ainda que não tenham sido discutidas em campanhas eleitorais prévias, observados que sejam os requisitos necessários para assunção do poder constituinte e se observe o processo de revisão. E reconheça-se também que, verificados aqueles pressupostos, as competências quer para as revisões ordinárias, quer para as extraordinárias podem exercer-se até ao termo dos mandatos, não havendo distinção entre sessões legislativas.
Mas, se olharmos as coisas mais de perto, vemos que afinal o argumento critico que vimos analisando ganha ou perde força em conexão com o que está materialmente em discussão em cada revisão. Se as propostas de revisão incidirem sobre questões que já foram objecto, embora com formulações várias, de programas eleitorais anteriores e até, em alguns casos, traduzam linhas de força dos programas dos partidos, não existe sequer surpresa. É' em nova revisão, apenas a continuação de um esforço anterior parcialmente mal sucedido para mudar a Lei Fundamental, lei que, a par de muitos méritos, continua a ter pecados originais graves que persistem desde 1976.
O Sr. Rui Carp (PSD): - Muito bem!
O Orador: - Por outra parte, os partidos e os Deputados que, na opinião do eleitorado, erraram na revisão que fizeram, sofrerão, como em relação a todos os seus actos políticos, a sanção de não serem votados ou reeleitos na eleição seguinte, podendo a câmara então eleita reparar sempre, se para tal houver a necessária maioria, a falta cometida.
Diga-se, por último, que, exigindo as alterações constitucionais para fazerem vencimento, um mínimo de dois terços na revisão ordinária e de três quartos na extraordinária, nada no caso português faz pensar que havendo ou não agora modificação na actual composição da maioria e da oposição, os votos constitutivos da maioria qualificada deixariam de ser os dos actuais dois mais importantes partidos, isto é, os do PS e os do PSD. Tão-pouco aqui se antevê, tendo em atenção o que está a ser discutido na revisão, qualquer efeito de surpresa a ser evitado pela participação da revisão para a próxima legislatura.
Dar acolhimento a argumentos que fragilizam a representatividade da Assembleia, além de juridicamente infundamentados, poderia dar razões aos que, por motivos de política eleitoral de calendário, estão predispostos a acarinhar teses favoráveis a uma dissolução antecipada da Assembleia. É mais uma razão para rejeitarmos as dúvidas levantadas sobre a legitimidade do exercício de poderes constituintes nesta 4.ª sessão legislativa.
Quanto à segunda objecção, o problema é mais complexo e, porventura, também mais interessante.
Comecemos pela tese, um tanto simplista e impressionista, da querela constitucional circunscrita, de uma vez por todas, à cruzada democrática pela supressão do Conselho da Revolução em 1982 e à revogação da irreversibilidade das nacionalizações em 1989. Foram, certamente, boas causas e boas vitórias, é verdade, mas o exame da necessidade de alterarmos e aperfeiçoarmos a Constituição tem de ir mais longe e mais fundo.
A Constituição, cada Constituição, pressupõe uma dada realidade não jurídica, de carácter físico e sócio-cultural que lhe é dada como pressuposto e que constitui o que os juristas chamam a natureza das coisas. Essa realidade não funciona, em relação às normas constitucionais, em termos de determinismo causal, mas condiciona o âmbito da liberdade do legislador, o qual, se ultrapassa os limites da realidade que lhe é dada como pressuposto, fará, na medida do excesso, uma Constituição semântica.
A Assembleia Constituinte, forçada a compromissos políticos com o MFA, extravasou dos pressupostos sócio-culturais existentes no seu tempo e, esses erros, desaparecido o clima político que os permitiu, tornaram-se evidentes e foram necessários procedimentos correctivos em 1982 e em 1989. Houve, porém, aspectos, precipitações menores do princípio colectivista que o não foram. Mas, a acrescer, e mais importante, note-se que a sociedade, a realidade económica e cultural evoluiu fortemente desde 1976 até hoje, segundo linhas muito divergentes das antes preconizadas no texto constitucional. A «força normativa da Constituição», porque enfraquecida pelo voluntarismo ideológico de certos partidos, não teve capacidade para conformar a realidade de acordo com o dever ser prescrito nas suas normas. E, actualmente, a sociedade de 1994, a caminho do século XXI, designadamente no domínio económico, regista grande diferença em relação à sociedade de 1974-75. Quer dizer, o afastamento entre aquela que é a nossa realidade actual, a natureza das coisas sobre que o legislador actua e tem de ter em conta em 1994, e a sociedade existente em 1974 é já enorme e torna-se cada vez maior, cada dia que passa, aumentando também o nominalismo das normas constitucionais.
Há, felizmente, pontos da Constituição em que o irrealismo não se fez notar. É o caso dos direitos, liberdades e garantias e das linhas gerais sobre o sistema político. Mas, nos preceitos que se reportam à matéria económica e social, o desajustamento é patente. Temos uma Constituição parcialmente semântica, isto é, a que se não dá importância no quotidiano da nossa vida colectiva. Isto já é mau, mas torna-se pior ainda, quando a Constituição, ao ter criado um Tribunal Constitucional e ao dar força vinculativa imediata aos direitos fundamentais de liberdade, se transformou numa lei superior de ordenamento e, assim, em princípio, reforçou a sua importância funcional. É que o carácter nominal dos seus preceitos tem, por força da solidariedade sistemática, um efeito largamente corrosivo sobre muitas disposi-