2088 I SÉRIE-NÚMERO 62
vo da humanidade - uma espécie de debate sobre o estado do mundo. Um debate que faz falta fazer aqui com mais frequência, porque nele poderíamos confrontar a nossa visão do mundo e as nossas convicções filosóficas com a realidade concreta da humanidade, sem o refúgio do egoísmo grupai com que tratamos o quotidiano da nossa vida política de Nação.
Fazemos o balanço do século que estamos a terminar e das tremendas transformações e enormes desafios que o mundo sofreu, sem termos qualquer possibilidade de um juízo consensual. Está tudo excessivamente próximo, é o nosso tempo e o modo e o espaço onde o vivemos é diferente e, muitas vezes, conflitual.
Pode pedir-se a um ruandês, preso e amontoado numa cadeia de Kigali, com o décuplo da lotação admissível, que pense o mesmo do mundo que, por exemplo, o morador de um condomínio fechado, como os que se fazem hoje na cidade de Lisboa? E eu, apesar de tudo, fiz uma escala reduzida, porque podia comparar, por um lado, os bairros ricos de Hong-Kong ou da Califórnia e, por outro, as crianças subnutridas da Somália, da Etiópia ou de outros países africanos
Esse choque, perante desigualdades sem limite, não nos pode fazer esquecer a grandeza do movimento e do seu sentido, vividos ao longo do nosso século Movimento de afirmação política dos povos, de que a liquidação do colonialismo é o ponto mais representativo, movimento de progresso social, em que a construção do Estado providência, que é um orgulho do nosso século, dá o peso da realidade institucional, mas onde avulta também a importância conquistada para a dimensão social do homem, de que o Pacto Internacional dos Direitos Sociais e Económicos é uma expressão justa, movimento de afirmação de valores, onde avulta a derrota do projecto nazi-fascista e a afirmação da força inalienável das liberdades e dos direitos cívicos, movimento de admirável progresso científico e técnico jamais visto e tão longe da aplicação justa que bem devia ter
E, no entanto, tanta coisa mal à nossa volta! Tanta coisa por fazer! Tanta fragilidade em tudo o que chamamos conquistas da humanidade! Tantos projectos falhados e adiados!
A Agenda para a Paz foi elaborada num momento de grande e profunda crise, onde alguns quiseram ver o fim da história Isto foi só há quatro anos, Srs Deputados! Foi há quatro anos que esse texto encheu páginas de jornais, um produto típico de uma filosofia, que eu me permito chamar género Reader's Digest, e que hoje, seguramente, nos parece chocantemente indigno, uma despudorada tentativa de manipulação que a vida tratou de desmontar em dois tempos'
As Nações Unidas viveram essa crise profunda - que nos acompanha ainda neste momento- com o cândido optimismo que então se espalhou pelo mundo Na introdução da Agenda para a Paz, esse optimismo transparece e está dito «O antagonismo que caracteriza as décadas de guerra fria impediu a Organização de manter as suas promessas originais (...) A Cimeira do Conselho de Segurança, em Janeiro de 1992, ofereceu a oportunidade, até então inédita, de ver reafirmado, ao mais alto nível político, o compromisso de cada um dos Estados-membros com os fins e princípios enunciados na Carta Nos últimos meses (...) ganhou raízes a convicção de que existe nova oportunidade de se atingirem os grandes objectivos da Carta uma Organização das Nações Unidas capaz de manter a paz e a segurança internacionais, de fazer respeitar a justiça e os direitos humanos e ( ) de promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla» Estas eram as esperanças de Boutros Ghali em 1992.
Esta longa citação serve para duas coisas em primeiro lugar, para enquadrar o trabalho desenvolvido pela ONU nos últimos anos, com realce para as grandes cimeiras mundiais, a do Rio, a de Viena, a do Cairo, a de Copenhaga, a que outras se seguirão, como a que foi referida agora, que se vai realizar em Beijing sobre a mulher, e, em segundo lugar, para um confronto com outra citação, esta tirada da Agenda para o Desenvolvimento, subscrita também por Boutros Gali, em Junho de 1994, isto é, dois anos depois da anterior, que diz o seguinte «O conceito de desenvolvimento e décadas de esforços para reduzir a pobreza, o analfabetismo, a doença e as taxas de mortalidade são grandes realizações deste século Mas o desenvolvimento como causa comum está em perigo de desaparecer da lista dos nossos objectivos prioritários A competição pela influência, durante a guerra fria, incentivou o interesse pelo desenvolvimento Os motivos nem sempre foram altruístas, mas os países que procuravam desenvolver-se podiam beneficiar desse interesse das grandes potências Hoje, a competição para levar o desenvolvimento aos países mais pobres acabou Muitos dadores cansaram-se dessa tarefa Muitos dos países pobres estão à beira do desespero O desenvolvimento está em crise os países mais pobres cada vez ficam mais para trás»
Estas eram as amargas palavras de Boutros Ghali, dois anos depois da Agenda para a Paz Amargas palavras para uma amarga realidade, que mostram um mundo mais injusto, retratado com crueza nos documentos preparatórios da Cimeira de Copenhaga.
Os números aí estão, e vou citar só alguns, porque vale a pena que fiquem registados no Diário da Assembleia É terrível que 20 % da humanidade - mais de mil milhões de seres humanos -, nossos companheiros nesta viagem, nesta barca, que se chama o planeta Terra, vivam com menos de um dólar por dia, sem água corrente, analfabetos e sem sistema de saúde assegurado É 100 vezes a população de Portugal' São 100 países como Portugal!
E terrível que o desemprego mundial atinja a impressionante soma de 30 % da população activa e que o fosso entre os países ricos e os pobres se alargue Os 20 % da população mais rica- estes são os números que foram fornecidos à Conferência - detinha, em 1960, 70 % da riqueza mundial, mas, em 1991, tinha 85 %, os 20 países mais pobres tinham, em 1960, 2,3 % do rendimento mundial e, em 1991, esse rendimento desceu para 1,4%.
Sr Presidente, Srs Deputados Sobre a Cimeira de Copenhaga pode dizer-se, com rigor, uma coisa que é contraditória, isto é, que ela cumpriu os seus objectivos e que, simultaneamente, ficou muito aquém das expectativas.
Quando refiro aqui expectativas, quero esclarecer que não me refiro a uma expectativa que a Cimeira nunca pode ter criado, a de que ela desse uma contribuição decisiva e determinante para o lançamento de um processo de desenvolvimento social, de erradicação definitiva da miséria e do alfabetismo e para a construção de uma economia para o emprego e para o bem-estar Essa expectativa, se fosse reportada à Cimeira, como ela se realizou, seria uma ilusão, e as ilusões são perigosas e desmobilizadoras.
O que o decurso dos anos mostrou, e estes últimos anos de forma exemplar, é que não há solução para esses problemas da humanidade que não passe pelo combate às suas causas