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2156 I SÉRIE - NÚMERO 65

do princípio da subsidiaridade, levada até ao próprio cidadão, isolado ou em grupo, como último escalão do poder político.
E a verdade é que o poder político orgânico tem vindo a recuar em face desse poder político inorganizado, ao ponto de a ascensão de poderes de facto que se impõem ao poder institucionalizado ser uma das constantes do mundo do nosso tempo. O corte de estradas, a ocupação de locais, o boicote a iniciativas públicas, o recurso a formas de defesa privada, a crescente apetência por formas de fiscalização selvagem quer do poder executivo, legislativo, quer do judicial, são aflorações de uma constante de fundo que seria perigoso desconhecer. Resultado: mesmo quando surge reforçado o autoritarismo, se não por isso mesmo, entremostra-se fragilizada a autoridade. O Estado e os pilares tradicionais da sua autoridade sofrem de osteoporose! A latere, uma como que rebelião larvar, traduzida no aumento vertiginoso da criminalidade, do consumo de drogas, da prostituição e outras formas de marginalidade social, e, sobretudo, a recusa dos valores estruturantes da nossa vida cívica, quantas vezes por apelo a novas formas de irracionalidade e fanatismo, encontra também motivação em reais ou pretensos erros da autoridade e do poder político formalmente legitimado. O poder político é cada vez mais contestado como refúgio de todas as depravações, em contraponto surgindo a sociedade civil como matriz de todas as virtudes.
Daí a necessidade de, para evitar o regresso às clássicas tentações do despotismo, que já para aí de novo afloram, corrigir estes males na fonte. Deve ser a nossa preocupação neste momento. Devolvendo ao soberano prerrogativas de poder que ele pode exercer tão bem como o Estado, se não melhor do que ele, substituindo assim uma relação de cooperação a uma dialéctica de conflitualidade. E também, se não sobretudo, reforçando a componente social da política, e das políticas, como forma de combater a montante as causas, em vez de a jusante os efeitos, das chagas político-sociais que nos angustiam.
É neste contexto que a acção popular surge a conferir a cada cidadão - isolado ou em grupo - um sentimento de participação no poder, de utilidade pessoal, de responsabilidade colectiva. É óbvio que, só por si, não chega. Mas, numa altura em que, por iniciativa do meu partido, vai ser ponderada a inclusão na Constituição de novas e importantes partilhas de poder, que comecemos por concretizar as formas de partilha nela já previstas.
Caracterizarei, de seguida, os mais importantes casos de divergência do meu grupo parlamentar relativamente ao projecto do Sr. Deputado Rui Machete, sem a preocupação de reproduzir o que a esse respeito consta do parecer da 1.ª Comissão, de que fui relator. Nada a opor, em princípio, a que o direito de acção popular seja extensivo a actividades não judiciais, nomeadamente a «procedimentos administrativos». Questão é saber se ainda nesse caso estaremos em face do «direito de acção popular», tal como a Constituição concebe. A palavra «acção» surge nela em sentido técnico-jurídico estrito ou como substantivização do verbo «agir»? Eu diria que, quando fala em «promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial de infracções» (e lembro que diz «das infracções» e não «de infracções» - eu li mal), é de acção em sentido técnico que se fala. Mas não faremos disso uma questão fechada.
Já, porém, teríamos grandes dificuldades - e peço para isto a especial atenção do Sr. Deputado Rui Machete - em nos pormos de acordo sobre a limitação do exercício do direito de acção popular à «defesa de direitos ou interesses difusos tutelados pelo ordenamento jurídico português». Esses, muito bem. Mas porquê só esses? Sendo feito que o projecto Machete identifica os direitos difusos com os que «pertencerem ou disserem respeito a um conjunto indeterminado e indeterminável de cidadãos», seriam sempre oponíveis a tal limitação, pelo menos as seguintes razões: dado que a Constituição não distingue (lembro, mais uma vez, que diz «das infracções sobre saúde pública», etc. e não «de infracções») entre os direitos objecto da tutela da acção popular, os difusos dos não difusos, a que título, sem cairmos em restrição provavelmente inconstitucional, iríamos nós distinguir por ela?
Com efeito, a Constituição reporta-se irrestritamente a «infracções contra a saúde pública, a degradação do ambiente e da qualidade de vida ou a degradação do património cultural», sem querer saber se os titulares dos direitos infringidos são ou não determinados ou indeterminados, determináveis ou indetermináveis! Assim sendo, com que justificação deixaríamos de fora da tutela da acção popular os titulares determinados ou determináveis dos interesses violados? Diga-se de passagem que um universo indeterminável de titulares de certo direito será sempre um universo indeterminado! E não é certo que os direitos ou interesses tendo por objecto a saúde pública, a degradação do património cultural e a degradação do ambiente tanto podem, na qualificação do projecto, ser difusos como não ser? A que título recusaríamos a tutela da acção popular quando não o forem?
São facilmente configuráveis violações de direitos de um determinado ou determinável universo de consumidores. Por exemplo, os que consumiram determinado produto insalubre; de lesados por uma determinada infracção ambiental; por exemplo, os em concreto afectados por certo depósito de resíduos tóxicos. Já porém será mais difícil determinar os titulares de certa lesão contra o património cultural ou contra o domínio público - para não sair das hipóteses mais frisantes -, a menos que se considere que, estando em causa direitos ou interesses do universo nacional, este estará, por globalização, definido.
De toda a evidência, o legislador constituinte quis sujeitar à especial tutela de todos, isto é, da acção popular, interesses que, pela sua particular importância - a saúde pública, o ambiente e o património cultural, a título exemplificativo -, justificam esse reforço de tutela! Por isso e não porque se trate de interesses de sujeito indeterminado ou indeterminável! Tão certo é ser assim que acopulou ao direito de acção popular o de requerer «para o lesado ou lesados» a correspondente indemnização. Como para «o lesado ou lesados» se estes fossem, à partida, indeterminados e indetermináveis?
Fica assim evidenciado o risco da restrição operada no projecto de lei em apreço. Ela corresponderia a amputar a acção popular de uma parte significativa do seu objecto. E porque havemos de amputá-la? Com receio de quê? Acaso um universo, por mais vasto, de titulares identificados ou identificáceis de interesses priva-