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538 I SÉRIE - NÚMERO 15

a expatriação à conversão. Terá avaliado mal o êxito da conversão facultativa, convicto de que o apego dos judeus a Portugal se sobrepunha em força atractiva à fidelidade à sua religião e à sua fé. Mas foi o contrário o, que na maioria dos casos se verificou.
Perante a evidência desse erro de avaliação, D. Manuel I aceita como bons baptismos de última hora - fechando os olhos à sua natureza patentemente simulada - e alarga por mais um ano o prazo inicialmente demarcado para o abandono do território nacional. E garante ao povo judeu, também por édito, que os chamados «conversos» não seriam objecto de inquirições e devassas durante vinte anos, quanto a autenticidade da sua conversão.
Enfim, apavorado com a imprevista expatriação do melhor da intelectualidade lusitana, da nata do comércio e das finanças, dos artesãos e cobradores de impostos, da mais avançada medicina do tempo, dos melhores astrólogos e mestres da arte de marear - por acréscimo no contexto da aventura das descobertas - o rei português passa dos expedientes suasórios à mais condenável violência. Decreta a conversão forçada e, num requinte de crueldade extrema, tira do poder dos pais os filhos menores de catorze anos, com o declarado objectivo de os industriar na fé cristã.
O próprio Bispo de Silves, já aqui citado, D. Osório, rotula de «iníqua» esta medida de crueldade tamanha, não sem afirmar que foi ditada por um «louvável pressuposto».
Não, decerto, o de assim acrescer o espólio das alma devotadas à fé cristã, mas o de forçar os pais à aceitação do baptismo como última tentativa de os reter em Portugal ou de, em alternativa, perderem os filhos.
Porque relembro eu tudo isto? Para evidenciar que ninguém levou mais longe o esforço de reter os judeus em Portugal do que o próprio rei que os expulsou!
A história tem destes contra-sensos.
Foram ainda assim em número elevado os judeus que sobrepuseram o seu amor a Portugal às exigências da sua fé. Converteram-se, na maioria dos casos, com reserva mental. O Rei D. Manuel, como vimos, de algum modo estimulou essa atitude. Os chamados «cristãos novos», ou «marranos», continuaram, «imo pectoris» fiéis à sua religião, à sua fé e, secretamente, à prática dos seus ritos.
Séculos de preservação de uma identidade não se apagam por decreto.
Acantonados (ou refugiados?) em lugares remotos e pouco acessíveis, adoptaram nomes de árvores; introduziram na dieta alimentar artifícios que lhes permitiram simular a rejeição do que pela sua religião lhes era vedado (as famosas alheiras são exemplo disso) e, no mais, continuaram artesãos, prestamistas, usurários, financistas e cobradores de impostos.
Mas Portugal perdeu o contributo da mais genuína intelectualidade judaica. Surpreendemo-la em países de acolhimento onde por muito tempo continuaram a considerar-se portugueses, e até a ajudar Portugal como financiadores da exploração do comércio com o Oriente.
O grande filósofo Espinosa, que nasceu holandês de ascendentes portugueses, Abraão Zacuto e Pedro Nunes, ilustram bem, sem necessidade de um exaustivo inventário das perdas, até que ponto Portugal se despojou de potencialidades de desenvolvimento científico e cultural que estavam ao nosso alcance, e deixaram de estar, porque um rei ambicioso quis desposar uma princesa. Conhecendo hoje, como conhecemos, a heterodoxa interpretação dos textos sagrados do grande Espinosa, é fácil a prognose póstuma de que, se a tivera escrito em Portugal, teria enfrentado os rigores da Inquisição.
Abraão Zacuto, judeu espanhol refugiado em Portugal foi o autor do célebre «Almanach Perpetuam», que serviu de viático aos mareantes portugueses. Pedro Nunes foi, como se sabe, o inventor do nónio. Leccionou na Universidade de Coimbra - a minha Universidade! - ensinou matemática ao Rei Sebastião. Antes lhe ensinara política - ter-se-ia evitado o desastre de Alcácer-Quibir!
Mas a tolerância com que D. Manuel - talvez repeso - encarou a permanência em Portugal dos «cristãos novos», viria a encontrar a sua antítese na intolerância fanática do seu sucessor, que ao introduzir a Inquisição em Portugal, exacerbou ódios rácicos e religiosos, promoveu inquirições e devassas, perseguições e martírios. Não só de cristãos novos, mas também. Essa página negra da nossa história é conhecida, e só veio a encontrar o seu epílogo quando o Marquês de Pombal, imbuído de desígnios iluministas, chamou ao Estado o controlo da Inquisição, neutralizando os seus excessos, proscreveu a distinção entre «cristãos novos» e «cristãos velhos», e praticamente repôs o fim das inquirições e devassas. Diz-se que desejou e promoveu o regresso a Portugal do «povo eleito». Decerto porque precisava dele para a reforma do tradicional modelo económico. Depois disso, como é sabido, com a primeira República, o Estado laicizou-se e introduziu a liberdade religiosa.
De novo em paz, os povos judeu e português só voltaram a enfrentar receios quando Salazar, sem perseguir localmente os judeus residentes - de alguns dos quais foi inclusivamente amigo -, disfarçou mal o seu apoio aos demónios do maior e mais repugnante genocídio da história moderna.
Houve que esperar meio século pelo Estado democrático de direito, em que após Abril nos tomámos, para que a liberdade de religião se convertesse, sem regresso, no direito fundamental que hoje é.
Foi esta, em breve resumo, a saga de coexistência, convivialidade e sofrimento que para sempre ligou os povos judeu e português.
Tão longa e acidentada ela foi que são raros os portugueses que, hoje, como no passado, podem ter a certeza de que não corre nas suas veias uma gota de sangue judeu, o mesmo acontecendo com os judeus que vivem ou viveram em Portugal, relativamente ao sangue português.
É quase irónico que falemos hoje em reencontro de povos, culturas e civilizações, quando, em larga medida, do que se trata é de um reencontro connosco mesmos.
Mas seria pena que não conseguíssemos extrair nada de novo desta e outras cerimónias com que quisemos assinalar a passagem de cinco séculos sobre um erro histórico, na tentativa de sobre ele reflectirmos, a partir dele aprendermos e, em contraste com ele, medirmos até que ponto fomos capazes de salvaguardar um fundo de recíproco respeito, recíproca admiração e até amizade.
Dois grandes povos, ornados por uma grande História, a que não faltaram a sublimação do sofrimento e a grandeza da tragédia, fazem o balanço de séculos de convivência no solo da mesma Pátria, dispostos a partir daí para novas formas de reaproximação cívica, cultural e política, enfim de cooperação na construção do futuro do mundo, tão carregado de ruins presságios e tão carecido de uma renovada fé nos valores da tolerância, da solidariedade, da justiça, do progresso e da paz.

Aplausos gerais.