6 DE DEZEMBRO DE 1996 537
Quero agradecer a sua gentileza, em meu nome e no de todos os Srs. Deputados, e expressar votos de prosperidade para V. Ex.ª, o Presidente do Estado e o povo de Israel: o que vive na Terra da Promissão por tanto tempo desejada, e o que continua a diáspora que para sempre ficará ligada ao destino da Nação Judaica.
Ilustres Membros da Nação Judaica, honra-nos a vossa presença. A presença de cidadãos de um grande povo e de uma grande Nação, tal como a nossa «pelo Mundo repartida». Um povo a que os acidentes da história e a saga de uma maneira de ser e de crer ciosamente preservada conferiu uma autenticidade inconfundível, que o sofrimento sublimou até ao heroísmo.
Custa a aceitar que só depois do maior genocídio e o mais cruento holocausto de que a besta humana foi capaz tenha sido possível o regresso do povo judeu à Terra Prometida, ou seja à Pátria que é hoje a vossa.
Tomo a vossa presença como testemunho de que a exaltação com que vivemos o significado desta cerimónia é uma via de sentido duplo.
Srs. Membros do Governo, Srs. Deputados, Ilustres Autoridades, Minhas Senhoras e Meus Senhores: A História assume-se inteira, no que tem de atractivo e no que tem de repulsivo. Não nos é licito separar o que em nosso entender foi bom, vangloriando-nos dele, do que em nosso juízo foi mau, pretextando que nos não diz respeito.
Não faria hoje sentido abjurar da escravatura que até ao fim praticámos; das guerras injustas que tantas vezes travámos; dos inocentes que a Inquisição vitimou; das ordens religiosas que expatriámos; da expulsão dos judeus que perpetrámos.
Por um lado, teríamos de ser capazes de situar-nos no cerne das condições em que tudo isso aconteceu; dos valores e sentimentos prevalecentes ao tempo em que aconteceu; da específica responsabilidade que a tudo isso presidiu. E não somos.
Por outro lado, teríamos de averiguar se os eventos que lamentamos foram, à época, um erro exclusivamente nosso, ou o resultado de um pendor civilizacional mais vasto.
Em pleno florescimento da «razão de Estado», mister era ainda saber até que ponto, nas relações inter-povos, ou inter-Estados, o bem de um podia ser o mal do outro ou o bem deste ser o mal daquele.
Não tenho a menor dúvida de que o adiamento pelos portugueses de Novos Mundos, que nos encheu de glória e abriu as portas da era moderna, foi encarada pelos povos achados como um acto de intrusão e de violência. E é sabido que o próprio Sócrates, modelo de virtudes, justificou a escravatura e praticou a corrupção.
Isso, porém, não nos impede de reconhecer que, determinado acto foi, mesmo no seu tempo, e na conjuntura civilizacional em que ocorreu, um erro histórico que, já então, podia e devia ter sido evitado.
É esse o caso - «nemo discrepante» - do édito de expulsão dos judeus, promulgado em 5 de Dezembro de 1496 pelo Rei D. Manuel I de Portugal.
Não faltam razões para podermos ter por certo que o Rei D. Manuel foi o primeiro a ter consciência do seu erro; que este se traduziu num acto induzido pelos poderosos Reis Católicos, Fernando e Isabel, que o precederam, em mais de quatro anos, - 31 de Março de 1492 -, na decisão de expulsar os judeus da vizinha Espanha; que aquela expulsão terá sido ditada por razões de Estado, consistentes no projecto hegemónico de viabilizar o casamento do rei português com a princesa Isabel, filha dos reis de Espanha; que o objectivo último era uma virtual concentração dos reinos de Portugal, Castela e Aragão sob a coroa do rei de Portugal.
Nesse então, as ligações pelo matrimónio entre famílias reais eram o único sucedâneo da guerra ao alcance de um projecto hegemónico. Hoje, a razão de Estado perdeu cotação na bolsa dos valores políticos. Mas nem sempre foi assim.
São muitos os sinais de que D. Manuel I apreciava o contributo do povo judeu no plano do interesse nacional, se não o próprio povo judeu em si, na síntese do mérito e demérito da sua identidade, maneira de ser e forma de estar, na linha multissecular da atitude para com eles dos reis de Portugal.
Não foram poucos, nem pouco significativos, os casos em que monarcas portugueses defenderam a comunidade judaica de ataques da então chamada «arraia miúda», sempre indefesa contra manipulações com base em rivalidades religiosas ou na lógica de interesses conflituantes.
Violações graves do direito da comunidade judaica a permanecer e a viver em paz entre nós chegaram a ser castigados, como já aqui foi realçado, com a pena de morte.
A presença de judeus - que terá chegado a atingir entre um sexto e um quinto da população portuguesa - não foi episódica mas continuada. Começou antes de Portugal ser Portugal e perdurou, pôr mais de um milénio, atravessando horizontalmente o tempo muçulmano e a era cristã, o Corão e o Novo Testamento, numa base de recíproco respeito étnico-religioso. Os reis de Portugal - aliás na linha da tradição muçulmana - acabaram por reconhecer à comunidade judaica uma espécie de «direito de cidade», ao demarcar-lhe espaços urbanos próprios e ao pactuar com a vigência intra-comunitária das suas instituições jurídicas e práticas religiosas, multisseculares e identitárias.
E bem sabemos que o tempo dessa saga convivial não foi, todo ele, propício à tolerância religiosa, mesmo antes do odioso advento das fogueiras da Inquisição.
A própria maneira de ser e de estar do povo judeu, ao recusar integrar-se na sociedade envolvente; ao preservar até limites de fanatismo a sua identidade religiosa e civilizacional, os seus comportamentos e os seus valores; ao acumular riquezas e capacidades de fazer inveja; ao praticar a usura, que a ética cristã considerava um pecado; ao dominar o sector bancário e financeiro; ao aceitar cobrar impostos e outras incumbências odiosas; e sobretudo ao negar a reincarnação do deus dos cristãos, contribuiu para que a sua presença fosse caldo de cultura propício ao acicate da intolerância religiosa, da espoliação e do motim.
Apesar disso, e dos inevitáveis acidentes de percurso, pode afirmar-se que a presença entre nós do povo judeu constituiu, para a época, um exemplo de convivência ou, no mínimo, coexistência relativamente harmoniosa.
São comummente reconhecidas as seguintes razões, entre outras, da convicção de que D. Manuel I, ao assinar o édito de expulsão, fez o que, ao mesmo tempo, gostaria de não ter feito:
Primeiro sinal: quando os reis Católicos expulsaram os judeus de Espanha, D. João II, o Príncipe Perfeito, não fechou as fronteiras ao seu ingresso em Portugal. Se estes puderam ser como que desejados, por maioria de razão o haviam de ser, na óptica do seu sucessor, os que já entre nós viviam ou os que entre nós ficaram.
Ao mesmo tempo que assina o édito de expulsão, o rei decreta que sejam bem tratados, mesmo os que preferissem