2126 I SÉRIE - NÚMERO 63
lariza-se, difunde-se. Deixa progressivamente de ter expressão material e passou a medir-se em capacidade de informação e relacionamento. Rede é agora a palavra mágica, a nova divindade dos sedentos de domínio.
Num mundo sem cancelas físicas e de caminho sem delimitações jurídicas circulam mais livremente as pessoas e os capitais, mas também a criminalidade, o tráfico de armas, de drogas e de sexo.
A insegurança converteu-se em preocupação universal dominante, sem combate a nascente das causas sociais que a determinam nem resposta eficaz a jusante delas. Cresce sem controlo e sem limite a capacidade individual de violência, destruição e desordem. Um míssil de longo alcance começa a estar ao dispor de fanáticos e loucos. As armas atómicas já não estão, elas também, todas em boas mãos e os que as controlam - quantas vezes um só homem - dispõem das nossas vidas como os antigos senhores dispunham da dos seus escravos. A ordem vem-se convertendo no mais relativo e vulnerável dos valores sociais e políticos. Ao relativizar-se, relativiza a liberdade, a democracia, o Estado de direito.
Mais grave do que tudo isso - alegam os pessimistas - é que estamos em vias de ultrapassar limites naturais, quase sem margem para recuo. O crescimento económico e demográfico acerca-se do ponto de ruptura e em muitos aspectos, os efeitos negativos desse crescimento abeiram-se dos limites da capacidade de regeneração do ecossistema.
Algo terá, pois, de acontecer para que as únicas saídas não tenham de ser catastróficas.
A cada um a sua escolha. É sabido que já fiz a minha: escolhi preocupar-me. Há décadas que vejo acumular os perigos sem resposta, científica ou outra.
E se hoje e aqui reafirmo estas minhas preocupações é precisamente porque é hoje o dia da liberdade, e achei que a melhor forma de homenageá-la e defendê-la é estimular uma reflexão salutar sobre os novos riscos que corre e os novos inimigos que tem.
Creio no homem e na sua capacidade de redenção. Se não acreditasse em que ainda estamos a tempo de evitar soluções catastróficas, cancelando a encomenda que delas vimos fazendo, não valeriam a pena as minhas bem intencionadas premonições.
Uma vez mais quero afirmar que não relaciono o essencial das minhas preocupações com o que se passa em Portugal. Pelo contrário: dou público testemunho de que na relatividade das coisas - ou seja dos países - Portugal é um dos que mais se pode vangloriar de estar lutando por soluções harmoniosas e por respostas redentoras, conseguindo com êxito justificar o optimismo possível.
A economia portuguesa vem sendo uma «menina» bem comportada, as preocupações sociais vão roubando espaço às preocupações políticas e Portugal ganhou assento no topo do futuro sistema monetário europeu, ou seja, na gestão de uma séria alternativa monetária ao dólar todo poderoso. Na gestão, quero crer, dos próximos passos a caminho de uma moeda única universal.
Nada disto, é claro, anestesia a dor das chagas sociais que também entre nós subsistem. Apesar disso, quem nos dera que não viéssemos a ser contaminados, mais do que já o fomos, pelas consequências do desvario cada vez mais globalizado que se apossou do mundo.
Não digo tudo isto por Portugal estar a ser gerido por um Governo do meu partido, nem por ter à frente desse Governo um camarada que muito admiro e prezo. Teria, então, de reconhecer, com inteira justiça, que a resposta aos fenómenos da abissal descontinuidade que referi vem de há muito, de anteriores governos, socialistas e não socialistas. E também, se não sobretudo, da capacidade de regeneração, compreensão e até sofrimento do povo português. Após meio século de olhos vendados pela pala sinistra da ditadura, soube com galhardia adaptar-se à nova luz da liberdade. Vem, afinal, do 25 de Abril, não como data, ou sequer como movimento, mas como processo continuado de institucionalização de uma nova ordem política e social.
Mas a preocupação que hoje particularmente me domina, é saber como poderão ser preservadas, nas fatais rupturas e descontinuidades do futuro, a liberdade e a democracia conquistadas em Abril ou a partir de Abril. A partir da sua cor, do seu perfume, das suas exigências de alma.
Que o Estado-Nação de hoje é uma organização a prazo, é constatação que já invade todos os manuais da sociologia política. Que a democracia representativa e parlamentar, tal como hoje a praticamos, enfrenta a custo as novas arremetidas da democracia directa e participativa, armada pelos demónios tecnológicos da cada vez mais fácil comunicação à distância, é também uma evidência.
O que ainda não é evidente - e espero que por longo tempo o não seja - é o fim do crescente desamor com que uma opinião pública cada vez mais reivindicativa e ansiosa de intervenção encara a classe política em geral e as instituições políticas em particular.
Isso sim, preocupa-me! Podendo, embora, recusar que estejamos em face de um movimento irreversível, dificilmente negaremos o próprio movimento em si. Um neo-anarquismo não consciencializado - quando não premeditado - mina os alicerces das instituições e das práticas políticas. Formas multipolares de decisão e poder enfraquecem progressivamente a autoridade do Estado e dos seus agentes, pondo em causa a sua própria e actual configuração.
Que respostas tem dado a esta galopante ruptura a nova deusa dos optimistas? A institucionalização de uma opinião pública cada vez mais actuante e decisora; a colocação ao seu serviço de até há pouco incogitáveis meios tecnológicos de pressão: as empresas de lobbing, as sondagens; o televoto; o referendo diário dos debates radiofónicos e televisivos; amanhã, o referendo habitual por meios informáticos; no limite, o referendo por recurso à simpática velharia em que corre o risco de se converter o voto já como máquina de remoção dos sobejos da fase institucional da política.
Será que gracejo ou deliro? Bem gostava de estar delirando, já que a esta prefiguração das coisas não acho eu graça nenhuma. No regresso à democracia directa, agora à escala informacional de um mundo só, vejo a retoma de formas cada vez mais subtis de manipulação da vontade dos cidadãos.
Na difusão do poder por miríades de microdecisores articulados em rede, só consigo divisar a anarquia, ainda que transitória, mas não a ordem, a recondução do interesse geral a um maior número de conflitos particulares do que de peixes tem o mar; o banimento do último resquício de solidariedade entre os homens, com o egoísmo transmudado no mais universal dos sentimentos.
É perante estes fenómenos de descontinuidade e ruptura que venho pugnando por mais reflexão, menos conformismo, menos alheamento, menos irresponsabilidade.
Estamos, queiramos ou não, no limiar de um novo renascimento. O inundo já é outro e continuamos a raciocinar e a agir como se fosse o mesmo. Condicionados por prejuízos culturais, vivências e modelos, se não prisioneiros deles.
Aconteceu o mesmo, afinal, no ocaso de todas as civilizações. A própria civilização romana, uma das que mais tiveram a vocação da eternidade, assistiu no seu estertor a fenómenos de saudosismo apelativo a um regresso às virtudes dos antigos. Devemos precaver-nos contra a re-