27 DE ABRIL DE 1998 2125
camente incómodo, prestou um relevante serviço à verdade, à História, à liberdade e à democracia.
Não porque se não soubesse já o que confirmou, mas porque nem todos o sabiam. A PIDE havia tentado desculpabilizar-se - e ao ditador que com ela directamente despachava -, lançando suspeitas sobre a própria oposição. Essas suspeitas ficaram para sempre no ar e os mais fanáticos defensores da ditadura agarravam-se desesperadamente a ela.
Os que do tempo do ódio não podem ter memória, ou os que desse crime horrendo não tinham mais do que vaga notícia, ao lerem na imprensa a inesperada confissão, terão seguramente dito: Afinal, era verdade! A PIDE existiu mesmo! E matava!... Os velhotes, afinal, tinham razão! Safa!...
Aplausos do PS, do PSD, do PCP e de Os Verdes.
Por isso, quando vi essa indignação substituída por protestos contra o sistema de segurança, por ter deixado entrar e sair de Portugal o audacioso confitente, como se do mais cordato cidadão se tratasse, fiz em vão esforços para me indignar.
Demais sei eu que Portugal deixou de ter fronteiras terrestres. Que tem agora as da Europa, que, progressivamente, deixa também de tê-las. Que um passaporte falso é hoje tão fácil de obter como um maço de cigarros. E que, com mais barba ou menos barba e, em última análise, mais nariz ou menos nariz - que tudo isso está hoje ao alcance do freguês... - a identidade física é apenas uma de entre várias à escolha de qualquer facínora.
E sabem os senhores? Sempre que no mais depravado dos homens permaneça um resquício de consciência moral, receber de bandeja a outra face pode representar a mais cruel das penas. 0 Sr. Rosa Casaco recebe-a ao ter agora asseguradas as garantias de legalidade e justiça de dois Estados de direito, o espanhol e o português, que tanto porfiou em recusar-nos.
Por isso é bom lembrar o mal que finda e o bem que começa. Se deixarmos perder a memória do nosso passado histórico, das suas glórias e dos seus fracassos, onde iremos procurar um sucedâneo igualmente valioso da consciência da nossa unidade e da nossa solidariedade como espaço político autónomo?
Lembrar o mal que finda é útil para que as novas gerações aprendam que a liberdade e a democracia, em que já nasceram, tiveram uma antítese de opressão e de dor.
Recordar o bem que começa, no próprio acto de começar, é consciencializar a necessidade de preservar esse bem, é reviver e convalidar a exaltação e a unanimidade com que o seu advento foi saudado, é combater a tentação de ensarilhar as armas dos antigos combates e de deixar fenecer as convicções que as municiaram de entusiasmo e de indignação.
A democracia e a liberdade, bens supremos para os quais ainda se não descobriram sucedâneos, não foram nunca conquistas para sempre. Houve que redescobri-las e reencontrá-las. E quem não fechar os olhos ao que acontece, prescrutando as tendências que se desenham e os resultados para que tendem, dificilmente foge à conclusão de que estamos no limiar da mais surpreendente e radical descontinuidade que a história regista e que deixou de figurar entre os atributos da nossa civilização - a capacidade de prever o futuro.
Daí que se confrontem nos painéis mentais as duas visões de sempre: a optimista e a pessimista. Visão optimista: sempre há-de haver soluções para os problemas que nos afligem.
A nossa capacidade de domínio dos fenómenos é cada vez maior; a inteligência colectiva - natural e artificial - aumenta e reforça-se com novos instrumentos sensoriais e intelectivos, como sejam, a rádio, a televisão, os meios electrónicos, a observação por satélite, a monitorização computorizada.
A genética abre novos espaços de domínio da natureza, inclusive modificando e recriando espécies vivas, sem excluir a própria espécie humana. Ainda que dominados por uma sensação de medo, somos agora capazes de interferir no património genético do homem.
A manipulação genética abre espaço à criação de novos recursos alimentares, por isso, e porque a riqueza alimentar global ainda chega para alimentar todas as bocas, a fome pode ser vencida. Tão depressa a ciência consiga captar e reter energias limpas, em termos de fácil utilização, teremos podido ultrapassar o flagelo das energias poluentes. Os direitos humanos estão a, progressivamente, humanizar o planeta, que é mais do que nunca espaço de liberdade.
A riqueza das nações cresce continuamente e não está demonstrada a incapacidade do modelo económico de mercado para se preocupar com a sua distribuição, o que até hoje, como sabemos, não tem acontecido. Começaram já os combates ao crescimento pelo crescimento, ao consumo pelo consumo, à competição sem regras, ao sensacionalismo sem freio.
0 próprio crescimento demográfico decresceu de ritmo. E toda uma consciência ecológica desperta. Um neo-panteísmo iluminado ameaça converter-se em religião das novas gerações. A paz, enfim, desenha-se como conquista definitiva a prazo. após o mundo dual da guerra fria, a progressiva extra-territorialização dos conflitos e a solução destes por recurso a mini-decisões cada vez mais descentralizadas e participadas.
E porque não acreditar num mundo sem doenças, com cada ser humano a viver dez vezes a duração da sua actual esperança de vida? 0 pessimismo - dizem, em resumo, os optimistas - traduz uma atitude de descrença na ciência e corresponde a uma visão ultrapassada, própria de mentalidades caducas.
Dizem ex-adversu os pessimistas: o maior perigo é precisamente essa cega fé na ciência que nos dispensa de reflectir sobre os graves desequilíbrios do nosso tempo e de encontrar soluções para eles.
Foi ela que, no último meio século, nos fez pagar o alto preço demográfico, ecológico, social e cultural das maravilhas que introduziu nas nossas vidas. Foi óptimo o alargamento da esperança de vida. Mas a população passou a crescer à razão exponencial de um bilião de seres humanos por década. 0 equivalente, em cada ano, à população da Alemanha, da França e da Suíça. Pagamos essa maravilha em fome, em exclusão social, em desemprego, em desequilíbrios naturais.
Foi espantosa a industrialização do mundo, mas pagamos por ela o preço da urbanização selvagem e das mais paranóicas agressões à natureza e aos seus equilíbrios.
Foi deslumbrante a conquista da informação instantânea e universal e da velocidade supersónica, mas estamos pagando por isso o preço social, político e cultural da interdependência de tudo e todos, da abertura do que era fechado, da globalização do que era circunscrito. 0 preço - digamo-lo sem falsas reservas - do fim do Estado-Nação como espaço de identidades e solidariedades, o fim, segundo alguns, da fase institucional do próprio fenómeno político, a irrecusável crise dos valores e da nossa impreparação para viver sem eles.
Tudo agora se processa em termos de supranacionalização, internacionalização, universalização em sistema de redes. 0 poder económico concentra-se em mega-empresas sem pátria. 0 poder político fragmenta-se, multipo-