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1120 | I Série - Número 019 | 03 de Dezembro de 2004

 

apreciemos primeiro o voto de pesar e, atendendo à figura veneranda em causa, julgo ser de deferir este pedido.
Vamos, pois, proceder à verificação do quórum.

Pausa.

Informo a Câmara que a Mesa regista a presença de 178 Deputados, o que significa que temos quórum mais do que suficiente.
Então, conforme o pedido formulado pelo Partido Socialista, vou dar a palavra ao Sr. Deputado Almeida Santos, para apresentar o voto n.º 224/IX, que ele próprio elaborou e que é subscrito por diversos Deputados do Partido Socialista, designadamente pelo Sr. Deputado António José Seguro.
Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: É, para mim, uma honra muito grande poder dizer algumas palavras sobre o voto de pesar que o Partido Socialista, com vários subscritores, incluindo eu próprio, apresentou na Mesa, a propósito do falecimento do Dr. Fernando Valle.
Quero dizer-vos, Sr. Presidente e Srs. Deputados, que Fernando Valle foi um dos seres humanos que eu mais admirei no decurso da maior parte da minha vida.
Conheci-o na campanha eleitoral para a presidência do General Norton de Matos, ambos falámos, num comício em Coimbra - eu como representante da esquerda da Academia, ele como representante da esquerda sénior de Coimbra, desse tempo -, e posso garantir-vos que, dos dois, o discurso mais jovem foi o dele, apesar de eu ter, nessa altura, menos de metade da idade do Dr. Fernando Valle.
Fiquei a admirá-lo para sempre e continuei a acompanhar a sua vida. Já tinha, então, um percurso notável mas continuou a notabilizar-se e posso afirmar-vos que, de facto, nunca conheci ninguém tão bom, um ser humano tão perfeito ou tão próximo da perfeição como o Dr. Fernando Valle.
Viveu 104 anos, o que lhe deu uma experiência única de vida, pois atravessou todo o século XX e ainda os primeiros quatro anos do século XXI.
Foi um aluno brilhante da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra mas não quis seguir a carreira académica, por pura modéstia, como noutros momentos não quis ser nada, por pura modéstia.
Quis ser médico na sua aldeia ou na sua terra e passou a vida a girar pela serra do Açor, a pé ou a cavalo, porque não havia estradas, de noite ou de dia, com vento ou com chuva, para exercer a sua profissão de médico de família. Não levava dinheiro aos doentes e, por isso, talvez seja o único médico que conheço que empobreceu a exercer medicina, sem desdouro para todos os demais. Quando tinha medicamentos, ele próprio os prodigalizava; quando não tinha, deixava uma nota em cima da mesinha de cabeceira, se houvesse mesa de cabeceira, porque nem sempre havia. Ele sentia-se feliz a exercer medicina desta maneira e toda a vida a exerceu.
Mas Fernando Valle teve também uma actuação cívica importantíssima. Foi um homem de ideias e convicções. Desde os 22 ou 23 anos que perfilhou os ideais da maçonaria e, não querendo sê-lo, foi um membro ilustre do Grande Oriente Lusitano. Não quis ser seu grão-mestre - mais uma manifestação de modéstia -, mas viveu em fidelidade os valores do Grande Oriente Lusitano (a liberdade, a igualdade, a fraternidade) e viveu-os a sério, não apenas teoricamente, não apenas nos discursos políticos, nas campanhas eleitorais, viveu em consonância com eles. E quando assim é um ser aproxima-se da perfeição.
Despojado de bens, modesto como poucos, solidário com o seu semelhante, bondoso como poucos homens terão sido, dei por mim, no seu funeral, comovido, como ainda agora estou, a dizer que ele viveu como um santo laico. E viveu como um santo laico! Podem crer que ele exerceu a profissão como um apostolado, ele viveu o socialismo - foi fundador do Partido Socialista e era seu presidente honorário quando faleceu - como o humanismo, como deve ser vivido, e viveu a sua própria vida com aquela serenidade espantosa, aquela bondade excepcional, aquela solidariedade para com o próximo que, até hoje, só os santos conseguiram.
Era um agnóstico, mas tinha a sua casa cheia de santos que admirava. Admirava o São Francisco e outros santos, entre os quais, por exemplo, Santo António, os jesuítas, que também se haviam despojado de bens para poderem fazer bem aos outros.
Quando foi preciso assumir uma atitude pela defesa da liberdade, ele assumiu-a, até ser preso e perseguido pelo regime anterior. E foi preso e perseguido também sem fazer alarde disso e sem se armar em vítima, porque ele considerava normal que, combatendo uma ditadura, a ditadura o perseguisse e punisse.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Quando morre um homem destes fica uma memória e fica um exemplo. Para mim, essa memória e esse exemplo vão valer tanto como valia a sua companhia, que era tão agradável, porque era, além do mais, um homem bonito - diziam as senhoras, eu não sou especialista nisso.