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I SÉRIE — NÚMERO 83

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Construímos as nossas vidas com base no contrato social que nos chama a participar sempre, para nos

apoiar quando precisamos. O Estado social lembra-nos o que somos: solidários. Orgulhosamente solidários.

O Estado social tem o peso exato da democracia. É imperfeito, como tudo na vida, e temos a ambição de

que seja melhor e mais presente. Mas nunca passa pela cabeça de ninguém voltar atrás, desistir da dignidade,

quebrar os consensos fundadores da democracia.

Até agora.

Nunca, como hoje, um Governo fez do revanchismo social a sua imagem de marca. Na verdade, o País

está, hoje, sob um duplo resgate.

O resgate financeiro, claro. A chantagem da dívida é o argumento para a imposição da austeridade que

mata a economia e o País. Quanto mais austeridade, mais gente no desemprego, mais recessão, mais dívida

se acumula. Não é um acidente, nem falta de jeito ou mera incompetência. É um plano deliberado para uma

violenta transferência dos rendimentos do trabalho para o capital financeiro.

Também o resgate da memória, efetuado por uma direita sedenta por reescrever a história. A

reconfiguração do Estado a um papel mínimo e a uma lógica assistencialista é-nos apresentado como uma

inevitabilidade insofismável. O preconceito ideológico de uma direita radical é travestido de ciência exata.

Mas esta ideologia radical, precisamente por representar uma rutura com todos os consensos nascidos em

Abril e fomentados por quatro décadas de democracia, precisa dos seus mitos fundadores. Daí o embuste

permanentemente encenado por um Primeiro-Ministro que nos diz que o Estado é gordo, pesado e ineficiente,

que foi o seu peso que nos trouxe à crise.

Vivemos todos acima das nossas possibilidades, dizem-nos, ou como os estereótipos chauvinistas contra o

sul podem ser assimilados e reciclados por um Governo da periferia da Europa.

Nesta cruzada contra tudo o que é público, pouco importa a Passos Coelho e Paulo Portas que todos os

números desmintam o seu discurso. Pouco lhes importa que Portugal seja um dos países da Europa onde se

trabalha mais horas por ano, que os orçamentos da educação e da saúde, ou mesmo o peso dos salários da

função pública, fiquem abaixo da média europeia, e que Portugal seja um dos países onde as transferências

sociais mais reduzem o risco de pobreza.

Não, não foram os serviços públicos e as prestações sociais que nos conduziram a esta crise. Mas isso

nada interessa a quem apenas quer saber da legitimação de um programa que sabe ser avassalador.

A direita, em Portugal, rasga o contrato social de Abril, condena gerações ao desemprego e à emigração,

para tentar reconfigurar as maiorias sociais e abrir caminho à transformação do Estado social em Estado

assistencial.

É o sonho da direita: responder às obrigações do povo, não com os direitos e a dignidade próprios da

cidadania, mas com a prepotência de dar como esmola o que é devido por direito.

Não nos enganemos, esta é uma escalada sem fim. Aceitar que a cantina social substitua o subsídio de

desemprego está a escassos degraus de aceitar o fim da democracia.

O Estado social é o cimento da democracia, a coesão solidária que nos faz cidadãos. Porque a democracia

não existe sem liberdade, e não há liberdade sem dignidade e sem igualdade. É a liberdade que esta direita

coloca em causa.

É por isso mesmo que o Governo se regozija com a redução da política à lengalenga da inevitabilidade,

com o jugo do Memorando da troica, a soberania limitada. É uma direita apostada na degradação de todos os

espaços da democracia: da concertação social ao Parlamento, da comunicação social ao seu próprio Governo

e até ao seu Presidente da República. Um Presidente que reitera a confiança no Governo cujo Orçamento

pediu para ser declarado inconstitucional, como aconteceu.

Um povo condenado a ser pobre emerge novamente como discurso oficioso de quem governa o País. Mas

aonde esta direita quer resgatar a memória coletiva de um povo existirá sempre quem diga presente. Aqui

estamos, para disputar a história!

Abril conquistou a liberdade e a democracia com luta, participação e mobilização popular. A mesma

mobilização de que hoje precisamos para recuperar poder sobre as nossas vidas, dizer não à troica,

renegociar a dívida, respeitar todos os nossos compromissos, o primeiro dos quais é do contrato social, o da

dignidade.

A democracia não é uma lei da física, independente das nossas vontades. A democracia é o nosso

exercício quotidiano dessa vontade.