23 DE OUTUBRO DE 2020
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O Sr. José Manuel Pureza (BE): — A segunda razão de rejeição de um referendo em concreto é, pois, a da assunção plena da responsabilidade do Parlamento em todas as circunstâncias e, sobretudo, quando ela
se revela de maior dificuldade técnica, de maior dificuldade jurídica e de maior dificuldade ética. Só uma lei do
Parlamento pode regular, com rigor e com prudência, com determinação e com sageza, uma situação tão
delicada quanto a da morte assistida, tipificando com precisão o que pode e o que não pode ser
despenalizado, fixando com rigor todos os direitos e todos os deveres das diferentes pessoas envolvidas,
estabelecendo com exatidão todos os mecanismos de controlo de uma aplicação escrupulosa da lei, ou seja,
legislando estritamente dentro da margem de articulação entre os diferentes princípios com acolhimento na
Constituição que são convocados para situações complexas como esta.
Há, da parte de muitos adeptos deste referendo, uma retórica velha de ataque ao Parlamento.
A Sr.ª Isabel Alves Moreira (PS): — Exatamente!
O Sr. José Manuel Pureza (BE): — É a lengalenga do secretismo dos gabinetes, é a rábula dos Deputados com medo do povo. Conhecemos o argumentário, sabemos de onde vem e a quem pretende
servir. Há mesmo quem se esmere em fazer do antiparlamentarismo dos iluminados o seu argumento. Numa
petição de convocatória de um referendo sobre a despenalização da eutanásia, diferente desta iniciativa
popular de referendo, mas que corre paralela a esta iniciativa popular, aqui, na Assembleia da República, os
peticionários invocam, do alto das suas cátedras, que — e cito — «este Parlamento é integrado por criaturas
maioritariamente vulgares, sem envergadura intelectual nem competência científica, nem idoneidade para
decidir sobre um tema desta dimensão cultural e civilizacional».
Cabe perguntar aos Srs. e Sr.as Deputadas que apoiam o referendo se se reveem neste retrato e se estão
disponíveis para apoiar quem pensa isto de vós.
A resposta a esta estafada retórica de desdém pelo Parlamento é a que está a ser dada por esta
Assembleia, com um processo legislativo que foi seguramente dos mais participados e juridicamente aturados
de que há memória na nossa democracia parlamentar. A acompanhar mais de quatro anos de debate intenso,
em todo o País, do litoral ao interior, envolvendo gente de todas as idades e de todas as condições sociais,
pronunciamentos meticulosos com invulgar difusão mediática de entidades científicas e de ordens
profissionais, tudo a desmentir categoricamente o estafado bordão de que «o povo não foi ouvido», o trabalho
parlamentar ao longo de todo este processo ouviu detalhadamente, em muitos casos mais do que uma vez, as
ordens profissionais, o mundo do Direito, da Medicina e da Bioética e todas as associações, todos os
movimentos cívicos e todas as personalidades individuais que sinalizaram interesse em se pronunciar.
Tinha de ser assim. E desafio cada um dos Srs. Deputados e cada uma das Sr.as Deputadas que defendem
o referendo a mostrar que o Parlamento não tem sido maximamente exigente consigo próprio no processo
legislativo da despenalização da morte assistida. Mais: desafio cada um dos Srs. Deputados e cada uma das
Sr.as Deputadas que defendem legitimamente o referendo a provar que a consulta popular terá garantidamente
a serenidade, o rigor e a exigência na abordagem deste problema que o Parlamento se impôs a si próprio
desde a primeira hora e se continua a impor até à votação final de uma lei.
Vozes do PS: — Muito bem!
O Sr. José Manuel Pureza (BE): — Sr. Presidente, Sr.as e Srs. Deputados, escreveu João Semedo: «Um referendo sobre direitos individuais é virar a democracia de pernas para o ar, é virar a democracia contra ela
própria». Esse, Sr.as e Srs. Deputados, é o desafio que temos de enfrentar, hoje e aqui, com lucidez e com
coragem.
Em nome de uma democracia que se leva a sério, em nome da responsabilidade do Parlamento, o Bloco
de Esquerda votará contra esta proposta e empenhar-se-á, como tem feito desde a primeira hora, em que
aprovemos uma lei tão prudente quanto determinada, no respeito pela livre decisão de cada um sobre o seu
fim de vida. É esse o nosso compromisso.
Aplausos do BE e de Deputados do PS.