24 DE OUTUBRO DE 2020
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A decisão sobre o referendo à eutanásia é uma decisão difícil. É assim porque a discussão sobre este tema
nos obriga a encarar a morte, mas nos convoca a proteger a dignidade da vida. Desafia-nos a promover a
participação cívica, mas recorda-nos que a consciência não se leva a votos.
A posição e o mandato da Iniciativa Liberal sobre a eutanásia são claros e conhecidos. A Iniciativa Liberal
inscreveu esta matéria no seu programa político, apresentou o seu próprio projeto de despenalização da morte
medicamente assistida e participa ativamente nos trabalhos de redação final da lei, insistindo, por exemplo, no
acesso efetivo a cuidados paliativos.
É, igualmente, clara a posição da Iniciativa Liberal sobre as vantagens da participação cívica dos cidadãos
na «coisa pública». Queremos mais pessoas envolvidas nas decisões que lhes dizem respeito, mais discussão
sobre o que é discutível, mais escrutínio e transparência nas decisões.
Sobretudo, a Iniciativa Liberal quer que este processo legislativo seja sólido, sem brechas e sem fraquezas,
de forma a produzir legislação sólida e ponderada. Ignorar a vontade de quase 100 000 pessoas de exprimirem
a sua opinião criaria isso mesmo: uma brecha e uma fraqueza na legislação que desejamos ver aprovada.
É quando vários direitos e vários princípios colidem que se exige o regresso à essência da política: a escolha,
por mais difícil que ela seja. A este propósito, citamos o Acórdão do Tribunal Constitucional, quando se
pronunciou pela constitucionalidade do referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez, em 20061:
«Estaremos ante uma situação em que tem todo o sentido afirmar, como TRIBE, que ‘numa democracia,
votar e persuadir é tudo o que temos. Nem sequer a Constituição está para além de uma revisão. E desde que
nós tenhamos de nos persuadir uns aos outros mesmo acerca de que direitos a Constituição deve colocar fora
do alcance do voto da maioria, nada, nem a vida nem a liberdade, pode ser olhada como imune à política com
letras grandes’ (The Clash of Absolutes, ob.cit., p. 240).
Poder-se-á, na realidade, pugnar pela não discutibilidade de certos valores, mas está para além de um modo
cooperativo de decisão sobre valores entender que a própria discutibilidade ou indiscutibilidade de alguns
valores seja, ela própria, indiscutível. Como, neste caso, não estaremos sequer perante matéria subtraída pela
Constituição à possibilidade de ser objeto de referendo ou que seja insuscetível de revisão constitucional, nada
impede o legislador de dar lugar a uma discussão alargada e direta antes de optar por uma solução, apesar de
não estar obrigado a fazê-lo.»
A escolha da Iniciativa Liberal teve como objetivo exatamente o de dar lugar a esta discussão alargada e
direta, e por isso votou a favor da realização do referendo.
Palácio de São Bento, 26 de outubro de 2020.
O Deputado do IL, João Cotrim de Figueiredo.
——
1. Fruto de uma iniciativa popular que reuniu a subscrição de 95 287 cidadãos portugueses, foi submetida à
Assembleia da República, no dia 18/06/2020, a ponderação sobre a aprovação ou recusa de um referendo
sobre a eutanásia, apresentado para votação final no Projeto de Resolução n.º 679/XIV/2.ª;
2. Recentemente, o Parlamento aprovou vários projetos de lei de vários partidos com vista a uma alteração
substancial do quadro jurídico português, de modo a permitir-se a realização da eutanásia ou da morte
medicamente assistida;
3. O declarante votou, então, contra todas as iniciativas submetidas ao Parlamento, justificando o seu voto
através de uma declaração de voto, como pode ser constatado no Diário da Assembleia da República n.º
32, I Série, de 21 de fevereiro de 2020;
4. Nessa declaração foi justificado o voto contra esses projetos, tendo-se mesmo reputado como um retrocesso
civilizacional a decisão de aprovação da eutanásia ou da morte medicamente assistida, como veio a
acontecer;
1 Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 617/2006, Processo n.º 924/2006, em sessão plenária, de 28 de outubro de 2005, relator: Conselheira Maria Fernanda Palma. (Consult.22.out.2020) Disponível em
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20060617.html