I SÉRIE — NÚMERO 59
22
nas lonjuras, nem na vivência aqui, no centro. O seu juízo é, naturalmente, menos emocional, menos
apaixonado. Admito que assim não seja, porém, em muitos jovens das sociedades que alcançaram a
independência contra o império português e viveram, depois, décadas conturbadas pelos reflexos de vária
natureza da anterior situação colonial.
Já para os portugueses com mais de 50 ou de 55 anos, o facto de revisitarem a infância ou a juventude é
mais desafiante, é uma mistura de recordações, de novos mundos descobertos, de desenraizamentos ou
novos enraizamentos, de primeira desertificação do interior do continente, de migrações e de muitas mais
imigrações, de transformações pessoais, familiares, comunitárias, de mortes choradas, de sinais na saúde e
na vida, de traumas dos mais diversos e, em momentos diferentes, por aquilo que sonharam e se desfez, pelo
que sofreram e ficou, pelo que esperaram e aguentaram e pelo que sentem nunca ter tido reconhecimento
bastante.
Para todos eles e muitos mais, o juízo é tão complexo como complexa foi a mudança histórica que, neste
dia, evocamos, na sua abertura para a descolonização, para o desenvolvimento, para a liberdade, para a
democracia.
Desenvolvimento, liberdade e democracia, sabemo-lo todos, sempre foram imperfeitos e, por isso, não
plenos, pois nunca foram resolvidas a pobreza estrutural de dois milhões de portugueses, as desigualdades
pessoais e territoriais e as desinstitucionalizações que aqui referi, em 2016 e 2018, e que a pandemia veio
revelar e acentuar.
Mas foi complexa essa mudança histórica em 1974, fruto da resistência de muitas e muitos, durante meio
século, com os seus seguidores políticos sentados neste Hemiciclo. Ela ganhou o seu tempo e o seu modo
decisivos no gesto essencial dos Capitães de Abril, aqui qualificadamente representados pela Associação 25
de Abril, que saúdo, reconhecido, em nome de todos os portugueses.
Aplausos do PS e do PSD.
Esses Capitães de Abril não vieram de outras galáxias, nem de outras nações, nem surgiram num ápice,
naquela madrugada, para fazerem história. Eles transportavam consigo já a sua história, as suas comissões
em África — uma, duas, três, alguns quatro —, anos seguidos nas nossas Forças Armadas, tendo de optar,
todos os dias, entre cumprir ou questionar, entre acreditar num futuro querido e que outros definiam ou não
acreditar, entre aceitar ou, a partir de certo instante, romper.
Tudo em situações em que a linha que separa o viver do morrer é muito ténue, apesar dos princípios, das
regras, dos ditames escritos por políticos e juristas em gabinetes, que não são os cenários em que a coragem
se soma à sobrevivência e à solidariedade na camaradagem. Pois foram estes homens, eles mesmos, não
outros, os heróis naquela madrugada do 25 de Abril!
Tal como haviam sido eles, também foram muitos, muitos mais os combatentes, ano após ano, nas
longínquas fronteiras do império. Como foram eles quem acabou por aceitar, para símbolos públicos e face
visível da mudança, oficiais mais antigos encimados pelos que haveriam de ser os dois primeiros Presidentes
da República na transição para a democracia.
Estes não eram, não tinham sido militares de alcatifa, tinham sido, sim, grandes chefes militares no terreno
e, nele, responsáveis por anos de combate, de coordenação com serviços de informação e de atuação
antiguerrilha, de proximidade das populações.
Foi assim aquele dia 25 de Abril, antes de suscitar o processo popular revolucionário que o seguiu e
apoiou, antes de ser, hoje, património nacional em que o seu único soberano é o povo português.
Foi, no seu eclodir, resultado de décadas de resistência e, depois, crucialmente, grito de revolta de militares
que tinham dado anos das suas vidas à Pátria, no campo de luta, e que sentiam estar a combater sem futuro
político visível ou viável, presididos eles, e todos nós, por dois chefes militares, um após outro, que tinham
conhecido, intensa e prolongadamente, a guerra de guerrilha em missões militares e cargos político-militares
dos mais relevantes.
Eis por que razão é tão justo galardoar os Militares de Abril, tendo merecido já uma homenagem muito
especial aquele, de entre eles, que, depois de ter estado no terreno, veio a ser peça-chave na mudança de
regime e primeiro Presidente da República eleito da democracia portuguesa, que sempre recusou o
marechalato que merecia e merece: o Presidente António Ramalho Eanes.