I SÉRIE — NÚMERO 80
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estrutura fundamental do Estado democrático de direito e a sua natureza herdada da política liberal dos
séculos XVIII e XIX» — encontramo-nos aqui com o Victor Hugo.
E continua: «Por um lado, o direito penal humanista, como Figueiredo Dias apelidou, foi definitivamente
dominado» — nesta época, o Sr. Deputado lia Figueiredo Dias e suponho que também lesse Victor Hugo —, e
avança defendendo a necessidade de respeitarmos a presunção de inocência, na página 234.
Portanto, falar sobre coerência neste debate torna-se problemático.
Aplausos do PS.
É evidente que o Sr. Deputado me poderá dizer a seguir que a coerência é na vida académica e que não
estamos na universidade, estamos no Parlamento. Mas uma coisa também lhe posso responder: desde 2003
que escrevo exatamente o mesmo sobre corrupção e sobre processo penal e aquilo que defendi hoje é
totalmente coerente com o que escrevo desde essa altura.
Só para concluir, dir-lhe-ia que essa linha argumentativa segundo a qual os factos ou a ciência não
interessam à política é um argumento que nós conhecemos, por exemplo, em português com açúcar, dito pelo
presidente de um país irmão, quando diz, por exemplo: «Vacinem-se se quiserem, corram o risco de virar
jacaré». Enfim, um político pode dizer isso quando não é doutor em bioquímica. Agora, um político que é
Doutor em política criminal,…
O Sr. João Oliveira (PCP): — Saiu na farinha Amparo!
A Sr.ª Cláudia Santos (PS): — … vir defender uma iniciativa legislativa que é claramente impensável sob o ponto de vista da presunção da inocência, do princípio da ofensividade, do princípio da legalidade, é uma
incoerência que, no caso do Sr. Deputado, é mais difícil de justificar.
Aplausos do PS.
O Sr. Presidente (António Filipe): — Para uma nova intervenção, tem palavra o Sr. Deputado André Ventura.
O Sr. André Ventura (CH): — Sr. Presidente, Srs. Deputados: Obrigado pelas palmas à citação fantástica. Sr.ª Deputada, penso que não ouviu aquilo que eu disse, mas vou explicar outra vez: esta proposta em
nada ou em muito pouco fere aquilo que nós entendemos que deve ser a presunção de inocência. E, como a
Sr.ª Deputada referiu, e bem, se há alguma coisa que podemos ter é coerência, porque quisemos acabar com
esta regra prevista na Constituição, não da presunção de inocência, mas da forma como é vista e interpretada.
É que não há uma interpretação da presunção de inocência, conforme a Sr.ª Deputada, académica, sabe bem,
há várias e — como eu disse e citei — de alguns muito melhores do que nós.
A Sr.ª Deputada reconhecerá que nos próprios acórdãos do Tribunal Constitucional houve quem
entendesse que esta proposta, ou outra parecida, não violava a presunção de inocência e reconhecerá que,
em muitos países da Europa e do mundo, há propostas semelhantes a esta com um princípio da presunção de
inocência tão ativo e tão firme como a nossa. Se gosta de Direito Comparado, vá lá estudar Direito Comparado
para ver como há países do mundo onde o princípio da presunção de inocência é levado muito mais a sério do
que em Portugal, nomeadamente em termos de prisão preventiva e de medidas de coação, e têm,
efetivamente, este tipo de modelo e de proposta.
Não se refugie na coerência, Sr.ª Deputada, para justificar o que o PS não quer fazer: criminalizar o
enriquecimento ilícito. Se não quer citar Victor Hugo, nem André Ventura, cite António Guterres: «Quando há
uma injustiça e a deixamos perpassar somos nós que falhamos por a deixarmos acontecer». Oxalá o Partido
Socialista, que gosta tanto de citações, ouvisse António Guterres sobre esta matéria do enriquecimento ilícito.
O Sr. Presidente (António Filipe): — Tem a palavra, para uma intervenção, o Sr. Deputado Jorge Lacão, do PS.