24 DE JUNHO DE 2021
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O Sr. Jorge Lacão (PS): — Sr. Presidente, Srs. Deputados: Há quem ache que ser democrata é cumprir as regras processuais da democracia. É certamente uma componente, mas eu acredito que ser democrata é mais
do que isso e implica uma forte adesão ética a valores e a princípios e creio que essa forte adesão ética a
valores e princípios passa, por parte de um democrata, em ter sempre a preocupação de defender o rigor e a
verdade e recusar a instrumentalização demagógica da opinião pública.
Ora, o que acontece aqui, hoje, é que vimos, de maneira fácil demais, a busca da instrumentalização
grosseira da opinião pública, partindo, desde logo, da ideia de que temos de criminalizar um tipo legal de
enriquecimento ilícito porque tal não existe na nossa ordem jurídico-penal.
Pergunto: o que é, por exemplo, o crime do recebimento indevido de vantagem? O que é o crime da
corrupção, certamente carecido de aperfeiçoamento quanto ao tipo? O que é o crime do peculato? O que é o
crime da participação ilegítima em negócio, para dar alguns exemplos? São, evidentemente, manifestações de
formas de enriquecimento ilícito presentes na nossa ordem jurídico-constitucional.
Então, talvez seja outra coisa que esteja em causa e essa outra coisa, presente no projeto de lei do Chega,
como a Sr.ª Deputada Cláudia Santos tão eloquentemente demonstrou, é, mais uma vez, a tentativa de eludir
o princípio penal da presunção de inocência e a proibição da inversão do ónus da prova.
É exatamente isto que está em causa e, sendo isto que está em causa, a pior coisa que se pode fazer é
pretender levar os outros a bater com a cabeça na parede em relação a uma impossibilidade constitucional. É
isso que o Sr. Deputado André Ventura veio convidar a que se fizesse, ou seja, que os outros batessem com a
cabeça na parede em relação a algo que sabem que não é possível.
Não é possível porque a nossa Constituição não o permite, não é possível porque o Tribunal Constitucional
já, unanimemente, o declarou, mas não é possível também em razão dos princípios e dos valores. É que
desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, desde a Convenção Europeia dos Direitos Humanos,
desde a Carta Europeia dos Direitos Fundamentais que todos sabemos que estes princípios não são apenas
de portugueses, são princípios adquiridos da civilização democrática e quem é democrata deve saber respeitar
os princípios em nome dos quais se constrói a democracia e o Estado de direito.
Aplausos do PS.
É por isso que se alguma aberração aqui existe é a tentativa de esgrimir uma impossibilidade. Ora, não
deixa de ser curioso que, a propósito dessa impossibilidade, tenhamos visto, em particular o Sr. Deputado
Carlos Peixoto, arvorar a suposta coerência do seu partido, no passado, em legislaturas anteriores, quando
aqui apresentou, precisamente, soluções que eram, como o Tribunal Constitucional demonstrou,
grosseiramente inconstitucionais.
Esteve o Partido Socialista quieto nessas alturas, particularmente em relação às iniciativas legislativas de
2012 e 2015? Não, Srs. Deputados. O PS apresentou as suas próprias iniciativas para aprofundar o princípio
da transparência, para aprofundar o âmbito dos deveres declaratórios dos responsáveis políticos, para
aprofundar o regime de sanção, em caso de violação desses deveres declaratórios.
O que fez a maioria de então, a maioria do PSD e do CDS? Votou contra essas iniciativas. E o que fez
essa mesma maioria? Insistiu em 2012 e insistiu em 2015 nas tais soluções grosseiramente inconstitucionais.
Já tinha, nessa altura, a obrigação de saber que eram redondamente inconstitucionais e, portanto, desde
então, do que é que o PSD e o CDS se revelaram responsáveis? Ao votar contra os projetos apresentados
pelo PS, nessas ocasiões, o que eles fizeram foi revelar-se responsáveis por termos atrasado a melhor
clarificação do princípio da transparência e dos deveres cometidos aos responsáveis de titulares de cargos
políticos.
O Sr. José Magalhães (PS): — Muito bem!
O Sr. Jorge Lacão (PS): — Quando, então, é que esta matéria foi clarificada? Foi clarificada quando foi possível mudar a maioria parlamentar, ou seja, na XIII Legislatura. Quando, finalmente, PSD e CDS deixaram
de ter uma maioria de controlo no Parlamento, então, foi possível, com a Lei n.º 52/2019, alargar claramente o
âmbito da transparência devida pelos responsáveis políticos, alargá-la, no âmbito dos deveres de declaração,
alargá-la no sentido da criminalização das falsas declarações e da ocultação ilegítima de enriquecimento,