I SÉRIE — NÚMERO 1
58
Comemoramos esta semana os 100 anos do seu nascimento. Sabemos que, provavelmente, este Parlamento não o fará no futuro com outra mulher de causas como Maria José Nogueira Pinto.
Aplausos do CH. Mas hoje homenageamos Natália Correia, que não era melhor nem pior; era diferente. Natália Correia era uma fumadora nata. Ficou célebre uma frase: «Não aceito nenhuma disciplina que me
seja imposta, sem que me demonstrem a razão dela.» Aos dias de hoje, Natália Correia continuaria a ser essa lutadora, até por não se poder fumar em espaços
públicos como esta Assembleia da República. Hoje, Natália Correia acenderia este cigarro e gritaria: «Liberdade!»
Aplausos do CH. O Sr. Presidente: — Tem, agora, a palavra a Sr.ª Deputada Alexandra Leitão, do PS. A Sr.ª Alexandra Leitão (PS): — Sr. Presidente, Sr.as e Srs. Deputados, Sr.ª Ministra Adjunta e dos Assuntos
Parlamentares: Hoje, evocamos Natália Correia, no centenário do seu nascimento. Mulher, escritora, poeta, ativista, política, feminista, mas, acima de tudo, uma mulher livre, plenamente e absolutamente livre, insubmissa, independente, vanguardista, inteligente e corajosa.
Evocar Natália Correia é evocar uma das obras mais fecundas, originais e até proféticas da literatura portuguesa. Mas não só. É também recordar a memória, sempre viva, de uma pensadora revolucionária, feroz opositora do regime político fascista e anacrónico do Estado Novo, de uma mulher que não aceitava os grilhões da repressão da ditadura. Foi por isso a escritora mais censurada pelo antigo regime, tendo mesmo sido julgada e condenada nos infames tribunais plenários pela sua Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, publicada em 1966.
A sua ânsia de liberdade também a tornava cética e crítica em relação a todas as formas de disciplina, incluindo a político-partidária nos pós-25 de Abril. Dizia só aceitar a disciplina quando lhe demonstrassem que ela é uma necessidade ética ou criadora. Assim pautou sempre a sua atuação como Deputada nesta Assembleia.
Foi contra todas as formas de opressão, e a favor de uma liberdade plenamente vivida, que a obra — poética, teatral, ficcional e ensaística — de Natália Correia se insurgiu, assumindo todos os perigos a que as suas posições a expunham, sobretudo nos períodos de conturbação histórica a que nos remete o tempo da sua escrita, que, como prenunciou a própria, só em período póstumo seria verdadeiramente entendida.
Evocamos hoje uma personalidade cujos traços só podem ser totalmente compreendidos em função da sua obra, e esta, por sua vez, não se pode demarcar do temperamento singular da autora. Natália Correia constitui um caso de relação simbiótica entre criação e criadora.
Como mulher, não posso deixar de salientar o carácter subversivo, inconformado e tantas vezes provocador com que reviu o papel do feminino na natureza e na criação, na fé, na história, na política e na sociedade, na vida privada como na vida pública. Desbravou caminhos de igualdade, não pela imitação de padrões que apelidava de «patristas», mas pela afirmação da identidade cultural da mulher, como forma de dar um novo rumo às sociedades, que designava como «matrismo».
Na revolucionária Mátria de Natália Correia encontramos a afirmação da liberdade feminina como força criadora.
Dizia Natália Correia que o seu «sonho de felicidade seria não haver necessidade de poesia como género literário por ela se achar já realizada na vida, porque, para os subalimentados do sonho, a poesia é para comer.»
E como nos alimentou Natália Correia de sonhos, enquanto escritora e patrona das artes e da cultura! Nas suas próprias palavras: «A inútil tragédia da vida / Não chega a merecer um poema. / Só o poema merece, por vezes / A inútil tragédia da vida. / As pessoas caem como folhas / E secam no pó do desalento / Se não as leva consigo / A fúria poética do vento. / Para que se justifique a nossa vida / É preciso que alguém a invente em nós. / Os que nunca inspiraram um poema / São as únicas pessoas sós.»