5 DE MARÇO DE 1986
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de pôr cobro às dúvidas que antes dela, com ou sem razão, se haviam suscitado sobre a constitucionalidade desses tribunais, sem, para isso, se ter de alterar a posição assumível, antes da revisão, perante o enquadramento dos tribunais marítimos na ordem judicial como tribunais especializados.
A situação actual é, pois, a de se abrir ao legislador ordinário a opção de criar tribunais marítimos na ordem judicial ou na ordem dos tribunais previstos no n.° 2 do artigo 212.°
3 — Ora, tudo isto ponderado, concluiu-se que o mais producente rumo a percorrer será o de criar tribunais marítimos como tribunais judiciais de l.a instância com competência especializada.
Com efeito, é de desabonar a ideia de se criar uma ordem especial de tribunais marítimos, com estruturas necessariamente pesadas e onerosas; na realidade, tem--se como impensável repristinar, pura e simplesmente, o sistema adoptado antes de 1976, fundamentalmente centrado na intervenção dos capitães de porto.
Há que judicializar os tribunais marítimos, até porque um tribunal não judicial dificilmente poderia assegurar, para o futuro, as garantias judiciárias que o dirimir de complexos conflitos de interesses postulará.
Inseridos os tribunais marítimos na ordem judicial, a preconizável especialização operar-se-á apenas ao nível da l.a instância, como faculta o n.° 1 do artigo 216.° da Constituição.
E, em breve parêntese, quase sem incidência na presente problemática, dir-se-á que o artigo 215.° (que reproduz, com uma alteração de pormenor, o anterior artigo 214.°) é, aliás e reconhecidamente, um preceito não dotado de dignidade constitucional; nele repercute o excessivo pendor regulamentar pela Constituição denotado nesta área, absorvendo matérias que melhor deveriam ter sido confinadas às leis de organização judiciária.
4 — A criação de tribunais marítimos como tribunais judiciais tem a seu favor uma outra ordem de razões. É, na verdade, sabido que em Portugal, e com cada vez mais esporádicas ressalvas, nunca alcançou c direito marítimo uma significativa dimensão doutrinal; para isso terá decisivamente contribuído a inexistência de uma tradição universitária sistematizada. E quase que se poderá concluir que hoje, no plano da indagação doutrinal, o direito marítimo, expresso em leis frouxas e desactualizadas, se está a confinar ao que advém da actividade dos tribunais. Como já foi sublinhado, tão relevante ramo do direito está entre nós a ser um direito quase judicial: a doutrina vai despontando do somatório de decisões dos tribunais, elas próprias dependentes do esforço pessoal dos juízes e do carrear de razões aduzidas pelas partes. Não será, obviamente, de falar num sistema de precedentes vinculativos, em estilo anglo-saxónico, mas o refrescamento da ordem jurídica é, sem dúvida, agora feito à custa do mérito intrínseco que a actividade processual possa proporcionar. No que respeita, sobretudo, ao direito comercial marítimo, a actividade judicial, porque «condenada» a colmatar lacunas ou imprecisões da lei nacional ou espaços em branco da doutrina (designadamente na exegese de textos internacionais, ganiu especiais contornos de autoridade, não apenas na perspectiva normativa a que, por exemplo, se referiu Car-bonnier (Droit civil, i, 10.a ed., p. 155), mas, de igual passo, num impulso de elaboração conceituai. Quase se poderia falar aqui numa actuação «pastoral» dos tribunais, como na frase de André Tunc.
Mas, por assim ser, aos tribunais terá de ser outorgada uma potenciada capacidade de especialização e do consequente apuro técnico. Para esse objectivo aponta a imprescindível dignificação da actividade judiciária. E esta, numa compreensível interacção, será, por certo, o fulcro de uma não menos necessária dignificação do direito.
Não será por de mais repetir que o universal fenómeno do «envelhecimento» dos grandes códigos tem no livro ni do Código Comercial uma expressão tanto mais grave quanto é certo que o direito marítimo está, por tendência, em continuado relacionamento internacional, desde os conceitos e regras aos seus próprios protagonistas. Ora, para que se possa estar aptamente presente nas relações jurídicas internacionais, com crescentes motivos de intensificação, importa que se possa intervir eficazmente no diálogo judiciário que elas abrem.
5 — A especialização dos tribunais marítimos promoverá, como é óbvio, uma justiça mais operativa numa área onde esta terá de estar muito particularmente vocacionada para assim se cumprir.
Tal especialização ficará reforçada pela intervenção de assessores técnicos. Na linha que se considera mais certa, estes não ficarão integrados no próprio tribunal, mas actuarão como seus auxiliares. O regime de assessoria técnica será, pois, assimilável ao do artigo 649.° do Código de Processo Civil e, ainda mais proximamente, ao do n.° 2 da base m da Lei n.° 4/70, de 29 de Abril (tribunais de família), embora com algumas especificidades.
6 — Não se propendeu para a instalação imediata de tribunais marítimos em todas as áreas de jurisdição; atento o previsível volume de processos que lhes passarão a estar afectados, seria duvidoso que tal se justificasse. Mais realístico será dar como instalado, a partir da entrada em vigor da lei, um tribunal marítimo em Lisboa; o início do seu funcionamento dependerá apenas de portaria que estabeleça a composição do tribunal colectivo e o quadro adequado de funcionários.
6.1 — Para que o novo sistema faça sentido e alcance resultados verdadeiramente úteis, importa que algumas normas de processo sejam adequadas ao particularismo do direito marítimo.
Daí que o artigo 7.° tenha retirado validade, em questões de direito comercial marítimo, aos pactos privativos de jurisdição nos casos em que ela caberia aos tribunais portugueses, por aplicação do artigo 65.° do Código de Processo civil, salvo se os pactuantes forem estrangeiros e se trate de obrigação que, devendo ser cumprida em território estrangeiro, não respeite a bens sitos, registados ou matriculados em Portugal.
Realmente, a experiência revela que o recurso a pactos privativos de jurisdição, com frequência utilizados, até pela forma simples de mera adesão a cláusulas tipo inseridas em conhecimentos de carga e em cartas--partidas, exclui em excesso a intervenção dos tribunais portugueses no julgamento de questões para que eles normalmente seriam competentes.
Evitar-se-ão assim sequelas extremamente negativas, que vão desde um aparente juízo desprimoroso sobre a eficácia dos tribunais excluídos até uma forçada actividade judiciária em tribunais de outros países, com uma desaconselhável assunção de encargos em moeda estrangeira. Nas questões de direito comercial marítimo cada vez mais se está a «importar» a justiça de outros países, numa prática que, em correspectividade, em nenhum deles tem lugar.