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II SÉRIE — NÚMERO 66

essa referência apenas importava o reconhecimento dos direitos que a CâmaTa tinha como senhorio dos terrenos. Por isso à Sociedade pertenceria, e não à Câmara, o direito de exploração das águas.

A Câmara, por seu turno, entendia e sustentava que, na forma em que a licença fora dada, subsistira o seu direito às águas e à exploração delas.

8 — Semelhantes divergências não tinham manifestamente razão de ser. O artigo 61.° não consignava nenhum ónus para a Câmara, pela razão muito simples de que ela não era a entidade que estava, no momento da publicação do decreto em questão, a explorar as águas mineromedicinais de Luso, nem era ela que estava para isso autorizada por lei ou licença especial. A Câmara nada tinha que fazer nos três meses seguintes à publicação do decreto, pois não estava a explorar as ditas águas, com autorização ou sem ela. Quem se mantinha nessa altura na exploração das águas, devidamente autorizada na forma exigida antes do decreto, era a Sociedade. Assim, esta, nos termos do artigo 61.°, para poder continuar no gozo da autorização que em 1854 lhe tinha sido concedida, é que tinha de cumprir com o disposto nesse artigo 61.°

Como não tinha de cumprir com as disposições do artigo 61." à Câmara não se podia aplicar a sanção prevista no artigo 62.": no caso, a anulação da licença e a sua cassação. A Câmara não fruía de qualquer licença. Pelo contrário, permanecia a concessão dada em 1854 (contrato e alvará citados) à Sociedade — e esta é que estava sujeita ao ónus estabelecido no artigo 61." para obter a revalidação da sua licença e para poder continuar no gozo da autorização que lhe tinha sido concedida.

A Câmara, com o alvará de 1894, nada perdeu em matéria de direitos com que ficou em 1854 — continuando a decorrer o período de amortização dos capitais despendidos pela Sociedade. Essa «corporação administrativa» continuou aguardando que tal período terminasse para o estabelecimento termal lhe ser devolvido.

Não era, pois, exacto que a Câmara tivesse perdido, como pretendia a Sociedade, nos termos dos artigos 2.° e 62.° do Decreto de 30 de Setembro de 1892, o direito à exploração das águas. A Câmara continuava a aguardar o termo da licença dada à Sociedade para readquirir o direito à exploração.

Não tinha, pois, nenhum fundamento a tese de que a referência que no alvará de 1894 se fazia ao contrato de 1854 apenas importava o reconhecimento dos direitos da Câmara como senhorio do terreno, e de que o direito à exploração das águas pertencia única e exclusivamente à Sociedade, sem dependência de prazo.

Nem do Decreto de 1892 nem do alvará de 1894 resuUava ta^ coisa.

9 — Seja como for, o que sucedeu foi que a Câmara e a Sociedade transigiram precisamente nestes termos e neste sentido (escritura de 20 de Junho de 1916). A Câmara reconheceu à Sociedade o direito de exploração das águas a título único e exclusivo, sem prejuízo do direito aos terrenos onde estas brotam, e a Sociedade, perante este reconhecimento, obrigou-se a pagar à Câmara uma certa quantia anual, considerando-se terminado o contrato de 14 de Janeiro de 1854.

10 — Simplesmente, o conteúdo do acto administrativo formalizado no alvará de 19 de Maio de 1894,

traduzido na revalidação da licença autorizada em 1854 para a exploração da água mineromedicional de Luso, não podia ser objecto de transacção, que é ura contrato civil, de um tipo reconhecido e aceite pela lei privada e não pelas normas de direito administrativo. A transacção dos destinatários de um acto de autoridade ou de império não podia validamente fixar o sentido do acto administrativo formalizado pelo alvará de 1894. Esse sentido só pelo autor do acto podia ser vinculativamente interpretado e não pelos seus destinatários: eius est interpretare cuius est con-dere (isto, é claro, sob o controle judicial competente).

A autorização de 1854, revalidada em 1894, não podia ser objecto de disposição por parte dos contraentes. Manteve-se, pois, de pé o acto administrativo unilateral de revalidação em tudo aquilo a que respeitava e especialmente no que toca ao dreito à exploração das águas pela Sociedade e, consequentemente, ao período por que esta seria legítima.

Não há, para mais, conhecimento de que a administração central haja «aprovado» a transacção e assim feito do seu conteúdo o conteúdo de um novo acto administrativo que tomasse o lugar do anterior (cf. o ofício a que a consulta se refere).

Assim, estamos perante um acto de direito privado, inoperante perante o acto administrativo cujo conteúdo pretendeu fixar. Só a administração central o podia alterar, e ainda assim com respeito por direitos adquiridos e pela leiJ.

Temos, portanto, em conclusão, que a transacção de 1916 entre a Câmara Municipal da Mealhada e a Sociedade para o Melhoramento dos Banhos de Luso nada eficazmente alterou nem podia alterar ao disposto ou estabelecido unilateralmente pela administração central no alvará de 1894, tal como deve ser entendido.

Que incidência, entretanto, teve a legislação posterior na situação criada pela administração central com base na legislação ao tempo em vigor?

11 — O regulamento de execução do Decreto com força de lei de 1892, com data de 5 de Julho de 1894, manteve a propriedade privada sobre as nascentes mineromedicinais, segundo decorre, entre outros, dos seusiartigos 12.°, 21.°, 45.°, 51.° e 62.° Neste sentido, v. Guilherme Moreira3 e Veloso de Almeida4, os quais são expressos no entendimento de que estes dois diplomas obedecem ao princípio fundamental de que a titularidade do domínio dessas águas era por eles atribuída aos donos dos prédios onde brotassem, no seguimento do disposto pelo artigo 445.° do Código Civil de 1867.

O Decreto com força de lei n.° 5787-F, de 10 de Maio de 1919, veio entretanto abandonar o princípio da propriedade privada das nascentes mineromedicinais. De acordo com o seu artigo 2.°, as águas mineromedicinais passaram a pertencer ao Estado, mesmo que não fosse dele o solo em que essas águas bro-

2 Esse contrato dc transacção, mesmo que fosse um acto dc direito público, teria sido ilegal, que mais não fosse porque sc traduziria numa concessão definitiva ã sociedade fora das condições em que uma nova concessão poderia ser adjudicada: cm hasta pública (artigo 59.°). A Câmara teria feito uma concessão, paru mais perpétua, fora das condições cm que estava autorizada Icpnlmcnte a fazê-lo.

3 As Aguas no Direito Civil Português, 2° ed., p. 426. ' Comentário à Lei das Águas, 2° ed., p. 445.