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II SÉRIE-A — NÚMERO 51
A ideia fora não criar hiato entre o' limite máximo do homicídio privilegiado e o limite mínimo do homicídio simples; o que melhor quadrava ao princípio da proporcionalidade. •; .....
O sistema veio a mudar pelo receio de que de uma tal opção se retirasse o propósito legislativo de infra--incríminar o homicídio simples, cujo limite mínimo era de 8 anos. Os 8 anos mantêm-se por essa razão. Realça--se neste domínio a introdução da técnica dos exemplos padrão no tipo de ofensa à integridade física qualificada (artigo 146."). A reforma transporta para este caso todas as circunstâncias previstas para o homicídio qualificado (artigo 132.°), o que significa que elas'ou outras com as mesmas características serão agravadoras da moldura penal das ofensas à integridade' física, desde que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente.
A técnica dos exemplos padrão, que a jurisprudência vem considerando compatível com o princípio da legalidade, sempre provocou resistências em vários sectores da doutrina. A reforma emite, através-deste seu reforço, um juízo de favorabilidade que é tanto mais importante quanto a técnica em causa surge no domínio dos crimes contra as pessoas. . i . ,......
Funcionarão assim estes exemplos padrão como'indicia-, dores da censurabilidade acrescida ou da perversidade do comportamento — uma espécie de presunção- ilidível.
Curiosamente a reforma, que em muitos dos seus traços mais vincados se aproxima do Projecto Alternativo alemão, prescinde aqui'da doutrina que ele adoptou. De facto, o Projecto Alternativo rebela-se contra a existência da figura, sendo este mais um dos pontos de discordância' com a lei penal alemã-em vigor. Segundo aquele, «onde o legislador não é capaz de determinar de forma inequívoca ilícito agravado ou culpa agravada através de tipos qualificados, também não deve'entregar aò juiz a cláusula geral dos casos especialmente graves, quer a esclareça ou não através de exemplos da regra sem importância» (5). >
O que aqui importa realçar é a inegável sintonia entre a técnica em questão e o princípio de legalidade. As circunstâncias que integram os exemplos padrão da reforma não são elementos do tipo, mias antes da culpa. É em relação a esta que o princípio da máxima determinação legal afrouxa — o que poderá ser discutível como solução, mas não indicia inconstitucionalidade. Depois de obedecer à legalidade da ilicitude, sucede que «o legislador renunciou expressamente a uma subordinação da matéria da culpa ao princípio da legalidade», como bem sublinha Maria Fernanda Palma (*).'
Da culpa, ,e apenas, dela; se,trata: As palavras usadas pela reforma não são inocentes: arredou-seO; termo «perigosidade» de que outras legislações lançam mão e fala-se antes, como ficou dito, em «censurabilidade» ou «perversidade», fazendo, transparecer que não é ida valoração objectiva do comportamento que se trata, roas do posicionamentado^genteface.a ele (7). '
Ño âmbito dos crimes contra a vida, regista-se que fica intocado o prazo dentro do.qual a interrupção voluntária da gravidez não é punível. A Comissão Revisora optara pelo seu alargamento até 22 semanas, no pressuposto de
(*) Cf. Altemativ-Entwurf Eines Strafgesetzbuches, 1966. p. IU.>. .
(') Cf. «O homicidio qualificado nó novo Código Penal português». Revista do Ministério Público, ànó -4.*, vol. 15,.p. 46. '.<:':'. i .
C) Neste sentido, Teresa Serra, in Homicídio Qualificado — Tipo de Culpa e Medida da Pena. Coimbra, 1990, p. 62. ... • -. ■
que algumas das anomalias do feto que justificam a prática de aborto (por fazerem prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou mal formação) só podem ser detectadas nessa altura. O facto de a proposta reverter ao prazo legal já previsto não se deve a qualquer ponderação dos bens jurídicos a ter em conta nesta sede (designadamente, o acréscimo de perigo para a saúde da mãe, sobre o qual não existe consenso nos meios científicos); A razão foi não tocar a matéria sem discussão alargada que estritamente sobre ela incida.
4 — Crimes contra o património
, É; sabido que da agenda da Comissão Revisora não constava nenhum propósito de significativa reformulação neste.domínio. Ainda assim, verificam-se alterações importantes que se reportam à nova concepção das dosi-metrias penais, à reformulação de tipos de crime nucleares neste âmbito e à introdução de figuras típicas novas.
As modificações que as dosimetrias registam têm proveniência em distintas preocupações. Tratou-se, por um lado, de bem sublinhar a menor desvalia dos crimes contra o património perante os tipos de crime contra as pessoas, que o Código de 1982 em parte obnubila. Critérios de oportunidade, a saber, o aumento da criminalidade patrimonial que por então se registou, deram origem a subidas nas molduras penais que traduziram em distorção perniciosa do princípio da proporcionalidade. A reforma, como foi dito, recentra a gravidade dos crimes no primado da pessoa humana, o que provoca mutação no significado relativo das sanções aplicadas aos crimes contra o património. Eles conhecem agora mais hipóteses de aplicação da pena de multa como alternativa à prisão [assim: artigos 203." (furto); 204.°, n.° 1 (furto qualificado); 205° (abuso de confiança); 217.° (burla); 218.° (burla qualificada); 219.°; ^223.° (extorsão de documento); 225.° (abuso de cartão de crédito); 226.° (usura)]. Opera-se também uma subida nos mínimos de crimes que revestem sensível gravidade, como é o caso do roubo (artigo 210.°), cuja pena mínima passa de 2 para 3 anos nos casos mais graves (artigo 210.°, n.° 2).
. Esta subida tem a ver com duas circunstâncias. Em primeiro lugar, a absorção pelo tipo simples de muitas situações antes integráveis no tipo qualificado, absorção que aliás perpassa toda a reforma. Em segundo lugar, a consciência de que a subida dos mínimos é tendencialmente infra-inçriminatória, pois faz operar o tipo criminal apenas naqueles casos que indiciam gravidade compatível com uma pena de dimensão mais elevada.
Na estruturação típica, o furto qualificado regista alteração de monta. Surgem agora duas formas de qualificação do,crime. .Uma, em termos de modificação do úpo teg&i de crime (agravação ope legis) que se sedia no n.° t do artigo 204.°.A outra, que depende da verificação de um conjunto de circunstâncias, acompanhada da concretização de uma cláusula geral (n.° 2 do artigo 204.°).
.A determinação do valor da coisa furtada opera-se também, diferentemente. Depois de uma proposta inicial de aproximar as definições de «valor elevado», «va^oi çraws»-deravelmente elevado» à noção de alçada, e da definição de «valor diminuto» ao salário mínimo nacional, acabou por vingar outro critério. Adoptou-se a utilização da unidade de conta processual, em nome da uniformidade da linguagem do direito penal adjectivo e substantivo (artigo 202.°).