20 DE FEVEREIRO DE 1997
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a saúde da mãe, sobre o qual não existe consenso nos meios científicos). A razão foi não tocar a matéria sem discussão alargada que estritamente sobre ela incida.
No douto entendimento de M. Maia Gonçalves a proposta da Comissão de Revisão do Código Penal afigurava--se mais equilibrada e até de harmonia com as soluções da Alemanha e da Espanha. Apontam-se mesmo soluções mais permissivas nos casos da Dinamarca, França, Grécia, Luxemburgo e Inglaterra, que despenalizam o aborto eugé-nico até à 25.a ou à 28.° semanas.
Neste artigo, e no seguimento da referida lei, consagrare a exclusão da ilicitude nos casos de aborto terapêutico — n.° 1, alíneas a) e b) —, eugénico — n.° 1, alínea c) — e sentimental — n.° 1, alínea d).
Podemos observar que o nosso ordenamento jurídico não exclui a ilicitude nos casos de aborto social, ou seja, do que é praticado devido à impossibilidade de a família sustentar o nascituro. A nossa lei alinhou, assim, pelos sistemas menos permissivos, de entre aqueles que consagram a licitude da interrupção voluntária da gravidez.
4.2 — A Lei n.° 6/84 tem sido considerada por vários organismos, associações e médicos como uma «lei desajustada». Numa intervenção proferida pelo Dr. Luís Elmano Barroco, no colóquio «10 anos depois, a situação do aborto em Portugal», realizado no Instituto Franco-Portugais, no dia 19 de Março de 1994, foi constatado pelo mesmo a inadequação desse quadro legal.
4.2.1 —O relatório do inquérito sobre a IVG em Portugal, realizado pela APF em Junho de 1993, 10 anos após a publicação da Lei n.° 6/84, veio mostrar que mais de 50 % dos hospitais, ou seja, 36 dos 54, responderam ao inquérito, dos quais 29 na zona norte e 7 na zona sul não realizavam IVG pelas seguintes razões: inexistência de serviços especializados (15), falta de recursos (6), objectores de consciência (8), impossibilidade de cumprir prazos (1).
Tal como se pode depreender pelos dados acima referidos, verifica-se, na opinião do Dr. Luís Elmano, que a lei dificulta a realização de grande número de casos, por isso a consideramos «desajustada» ou «inadequada», mas permite resolver pelo menos 50% dos que se apresentam.
Nesse relatório consta ainda a informação de que cinco hospitais não têm pedidos de interrupção de gravidez.
4.2.2 — Há quem entenda ainda que a Lei n.° 6/84 não contempla as condições sociais e sócio-económicas num país em que são precisamente estas as que levam a grávida a procurar o aborto clandestino, com toda a morbilidade que a interrupção da gravidez naquelas condições acarreta. Existe ainda hoje uma patologia significativa resultante da prática de IVG clandestinas e efectuadas sem os mínimos cuidados de saúde — lesões cervicais, a perfuração uterina, a infecção, a sépsis ou salpingite com infertilidade.
4.2.3 — Assim, a APF tem manifestado em público a sua posição de carácter conclusivo, que vai no sentido de considerar que a lei portuguesa não encara a IVG como um cuidado de saúde primário, sendo inadequada em alguns pontos cruciais, como é o caso dos prazos, demasiado curtos para permitir o diagnóstico pré-natal. Além disso, a realidade é muito dispare entre os vários estabelecimentos de saúde. Para esta associação as razões para o pequeno número de abortos legais praticados em Portugal são essencialmente as seguintes: falta de informação das mulheres sobre as possibilidades contidas na lei; deficiente organização dos serviços de saúde oficiais; limitações da própria lei quanto à possibilidade do exercício das IVG; direito da objecção de consciência por parte do corpo clínico.
V
Da posição do Tribunal Constitucional em 1984 e 1985 principais acórdãos e jurisprudência
Tal como se adivinhava, dada a polémica que envolveu os debates parlamentares e as dúvidas de constitucionalidade que entretanto se suscitaram, o Presidente da República, ao abrigo do artigo 278.° da CRP, requereu ao Tribunal Constitucional a apreciação preventiva da constitucionalidade da norma relativa à chamada «exclusão da ilicitude em alguns casos de interrupção voluntária da gravidez» constante do artigo 1.° do decreto n.° 4l/UJ da Assembleia da República.
0 Presidente invocou, na altura, os seguintes fundamentos:
1 — Antes de efectuar a promulgação do diploma em apreço considerou necessário que, previamente à decisão que entenda tomar, o Tribunal se pronuncie sobre tal constitucionalidade, dado que diversas entidades, organizações nacionais e muitos cidadãos, alguns deles técnicos, especialistas médicos e juristas, entenderam que, nos casos limitados previstos na nova redacção ao n.° 1 do artigo 140.° do Código Penal, a exclusão da ilicitude do aborto é, entre nós, incompatível com o princípio da inviolabilidade da vida humana estabelecido no artigo 24.° da Constituição ou que, pelo menos, é de duvidosa constitucionalidade.
2 — Para tanto aquelas entidades e organizações apresentam, de entre outros, como fundamentos essenciais da tese da inconstitucionalidade da norma que despenaliza, ainda que com certas limitações, a interrupção voluntária da gravidez, as seguintes razões:
2.1 — A Constituição estabelece no seu artigo 24.° que a vida humana é inviolável e que em caso algum haverá pena de morte. Se ambos os princípios estão inseridos no direito à vida (epígrafe desse artigo 24.°), a sua amplitude ou extensão conceituai é diversa porque, em termos técnico-jurídicos, as penas, mesmo a de morte, só têm sentido relativamente a pessoas criminalmente imputáveis, isto é, que, além do mais, tenham idade superior a determinado limite mínimo; '
2.2 — Assim, a «vida humana» referida no n.° l do artigo 24.° da Constituição abrangeria também a vida humana intra-uterina, que, a ser assim, estaria protegida, ao menos indirectamente, na lei fundamental, até porque esse entendimento postula um dado da ciência médica que, como tal, é aceite pelo sistema jurídico português actual, que, nessa parte, não é substancialmente diverso daquele que vigorava na altura em que a Constituição foi elaborada ou revista:
a) Quer o Código Penal anterior quer o actual, para além de estabelecerem a ilicitude do aborto, consideram-no um atentado contra a vida das pessoas, como resulta da inserção sistemática da respectiva tipificação;
b) No Código Civil os nascituros são protegidos desde o momento da concepção para diversos efeitos, designadamente na perfilhação (artigo 1855.°), na presunção da paternidade e reconhecimento (artigos 1810.°, 1822.°, 1825.° e 1847) e, sobretudo, para efeitos sucessórios (artigo 2033.°).
3 — Deste modo, pelo recurso à «unidade do sistema jurídico», como critério interpretativo (artigo 9.°, n.° 1, do Código Civil), a expressão «vida humana» usada no artigo 24.° da Constituição consagraria a tese que defende que a «vida humana começa com a fecundação» e que com a fecundação ou a concepção se gera ou surge um ser humano.