O texto apresentado é obtido de forma automática, não levando em conta elementos gráficos e podendo conter erros. Se encontrar algum erro, por favor informe os serviços através da página de contactos.
Não foi possivel carregar a página pretendida. Reportar Erro

20 DE FEVEREIRO DE 1997

331

A exclusão da ilicitude só abrange os abortos praticados nos primeiros meses de gravidez, à excepção da alínea a) do artigo 140.°, sendo certo que não é indiferente, à luz da consciência cultural e jurídica, a fase de desenvolvimento do feto, reclamando este uma tutela tanto maior quanto mais próximo estiver o nascimento.

Alicerça-se ainda a decisão do Tribunal Constitucional numa segunda ordem de argumentos, que se prendem com o estatuto constitucional da lei e da sanção penal. Os bens ou valores constitucionalmente protegidos em geral, tenham ou não a natureza de direitos fundamentais, exigem do Estado que ele mesmo não atente contra eles e que os proteja dos atentados de outrem.

Enquanto bem constitucionalmente protegido, também a vida intra-uterina reclama, portanto, a protecção do Estado. Todavia, entre afirmar-se isso e sustentar que essa protecção tem de revestir, por força da Constituição, natureza penal, mesmo contra a mulher grávida, vai uma enorme diferença e distância, não podendo daí inferir-se que a ausência de protecção penal equivale, pura e simplesmente, a desamparo e desprotecção.

Como é lógico, o recurso a meios penais está constitucionalmente sujeito a limites bastante estritos. Constituindo as penas, em geral, na privação de sacrifícios de determinados direitos (máxime a liberdade no caso de prisão), as medidas penais só são constitucionalmente admissíveis quando sejam necessárias, adequadas e proporcionadas à protecção de determinado direito ou interesse constitucionalmente protegido (cf. artigo 18.° da CRP), e só serão constitucionalmente exigíveis quando se trate de proteger um direito ou bem constitucional de primeira importância e essa protecção não possa ser garantida de outro modo.

No caso do aborto e da garantia da vida intra-uterina, outros meios de tutela e de combate ao aborto existem que devem preceder os meios penais e cuja ausência ou insuficiência só (orna mais gravosas e desproporcionadas as normas penalizadoras.

É feliz a expressão do douto relator quando afirma nesse acórdão que, «sob um ponto de vista jurídico-constitucio-nal, a tutela penal há-de ser a última ratio das medidas culturais, económicas, sociais, sanitárias, e não um sucedâneo para a falta delas».

Assim, o Tribunal considerou que nos casos abrangidos pelas normas em discussão não é sustentável uma obrigação constitucional de penalização. As situações constantes da Jei vertente são situações de conflito de tal natureza e gravidade que não se pode defender ser apropriado ou proporcionado impor à mulher grávida, mediante instrumentos penais, que sacrifique os seus direitos ou interesses consti-tucionalmente protegidos, a favor da persistência da gravidez.

O Tribunal Constitucional não vislumbrou, assim, a existência de razões que levem a censurar, no plano jurídico--constitucional, as normas que excluem a ilicitude em certos casos de interrupção voluntária da gravidez.

A decisão não foi, no entanto, pacífica, dado que se verificaram seis votos de vencido.

Decorridos 12 anos depois da discussão quente e complexa que se verificou na Assembleia da República, aquando da apresentação de projectos do PS e do PCP, voltamos a envolver-nos em novas polémicas. Desta vez estão em causa os projectos de lei n.05 177/VTl (PCP) e 236/VTI (JS) e, em menor grau de contestação, o 235/VTI (PS), dado que

este, ao contrário dos outros dois, não propõe a IVG a livre pedido da mulher até as 12 semanas.

VI

Do enquadramento constitucional

A matéria controvertida nos projectos de diploma em apreço implica conexões com vários artigos do texto constitucional, de entre os quais se destaca o artigo 24.° da CRP, que consagra o direito à vida. Estabelece ainda o seu n.° 2 que, em caso algum, haverá pena de morte.

O direito à vida é o primeiro dos direitos fundamentais constitucionalmente enunciados. No douto entendimento de J. J. Oomes Canotilho e Vital Moreira, este direito é prioritário, dado que está na base de todos os direitos das pessoas que decorrem deste; «ao conferir-lhe uma protecção absoluta, não admitindo qualquer excepção, a Constituição erigiu o direito à vida em direito fundamental qualificado. O valor do direito à vida e a natureza absoluta da protecção constitucional traduzem-se no próprio facto de se impor, mesmo perante a suspensão constitucional dos direitos fundamentais, em caso de estado de sítio ou de estado de emergência, e na proibição de extradição de estrangeiros em risco de serem condenados a pena de morte».

A análise que se faz do artigo 24.° da CRP poderá conduzir-nos a entendimentos diferentes consoante entendamos que a vida intra-uterina compartilha da protecção que a Constituição confere à vida humana enquanto bem constitucionalmente protegido (isto é, valor constitucionalmente objectivo), mas que não pode gozar de protecção constitucional do direito à vida — que só cabe a pessoas —, podendo, portanto,' aquele ter que ceder, quando em conflito com direitos fundamentais ou com outros valores constitucionalmente protegidos; ou se formos do entendimento de que os termos «vida» e «morte» do artigo 24.° têm carácter biológico, e para a biologia a vida humana começa no zigoto. O direito à vida está indissociavelmente ligado ao facto biológico da existência humana, que constitui o pressuposto de tal direito. É lícito, por isso, afirmar que se tem direito a viver porque já se vive.

Se a CRP protege a vida do nascituro e o aceita como titular do direito à vida é porque lhe reconhece a qualidade de pessoa.

Relacionados com esta questão estão de forma reflexa envolvidos os princípios ou normativos constitucionais, tais como: artigo 36.°, n.° 3 (igualdade dos direitos dos cônjuges à manutenção dos filhos), artigo 25.° (direito à integridade pessoal), artigo 1.° (dignidade da pessoa humana), artigo 67.°, n.° 1 (realização pessoal), artigo 68.°, n.° 2 (valores sociais eminentes da maternidade e paternidade), artigo 69.° (desenvolvimento integral das crianças) e artigo 71.° (plenitude dos direitos dos que sofrem de doença física ou mental).

Vffl

Breve perspectiva de direito comparado

A presente situação relativa à IVG na Europa é bastante diversa, porquanto oscila entre a proibição absoluta do aborto, plasmada na Constituição da Irlanda, e o direito explícito de as mulheres decidirem por elas próprias, na Suécia.