O texto apresentado é obtido de forma automática, não levando em conta elementos gráficos e podendo conter erros. Se encontrar algum erro, por favor informe os serviços através da página de contactos.
Não foi possivel carregar a página pretendida. Reportar Erro

442

II SÉRIE-A — NÚMERO 24

uma-simples coisa e de que o seu estatuto jurídico se tem de moldar fundamentalmente pelo estatuto próprio das pessoas, e não pelo dos objectos.

O ponto é simples, mas de uma densidade ética e cultural extraordinária. A Declaração Universal dos direitos do Homem, aprovada em ¡948, proclama no primeiro considerando que «o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo». É a ideia da universal e igual dignidade de todos os seres humanos, legado perene da revolução moral que o Cristianismo trouxe à humanidade, e que hoje se encontra expressamente positivada em numerosos pactos internacionais e constituições nacionais.

A humanidade não pôde ainda realizar na prática, integralmente, essa ideia grandiosa, mas ela constitui sem dúvida, neste limiar do terceiro milénio, após longa maturação histórica marcada por inúmeras vicissitudes, um elemento basilar sem o qual a cultura e a civilização do nosso tempo não seriam sequer pensáveis. E se nos não é dado saber que mudanças e penas estão reservadas à humanidade no futuro e se ainda o passado mais recente nos deixa memória amarga de incomensuráveis hecatombes e de pavorosas injustiças e dores — neste final de milénio podemos, todavia, contar com as esperanças e promessas que germinam da difusão irresistível dessa ideia à escala do globo e do repúdio cada vez mais generalizado e consciente das suas multímodas negações, desde as formas históricas da escravatura e da capitis deminutio de vencidos e estrangeiros, até às práticas mais subtis da discriminação jurídica c social e da opressão política e económica de pessoas e grupos, muitas delas, infelizmente, ainda actuais.

A discriminação entre vidas humanas que pretensamente valeriam mais e vidas humanas que pretensamente valeriam menos do que outras vidas humanas é justamente sentida como um atentado aos fundamentos mesmos da nossa civilização. O princípio da universal e igual dignidade do género humano é o alicerce do pensamento jurídico moderno; a não discriminação entre seres humanos, quer enquanto indivíduos quer enquanto membros de grupos sociais, tornou--se —justamente— imperativo fundamental da ordem jurídica, com expressão necessária no direito civil.

O princípio deve ser reconhecido face à diversidade das condições e fases cronológicas de uma mesma existência humana, especialmente com referência às que estão mais expostas a riscos de tratamento indigno, como as situações de doença, invalidez e sofrimento, e as idades da pré-infân-cia e infância e da velhice. O doente e o inválido não têm menor dignidade que o forte e saudável e carecem de maior protecção da ordem jurídica. Do mesmo modo. o ser humano considerado nas sucessivas idades que na sua vida atravessa. Embrião, feto, recém-nascido, criança, adolescente, jovem, adulto, de meia idade, velho — são nomes diversos de um mesmo homem, único e insubstituível, sempre igualmente digno de ser reconhecido como superior às coisas, como distinto do mundo dos objectos, numa palavra, como sujeito da ordem jurídica.

A vida pré-natal está hoje confrontada com grandes riscos, muitos deles de cariz inteiramente novo e sem precedente conhecido na história. Tecnologias ainda há pouco inimagináveis, ao mesmo tempo que facultam progressos terapêuticos cada vez mais promissores, multiplicam também as possibilidades de manipulação e predação iníquas da vida pré-natal. É urgente que a ordem jurídica, nos seus vários níveis de regulamentação — e desde logo na lei civil;

enquanto define o estatuto fundamental das pessoas jurídi-

cas e dos seus direitos e relações — considere os problemas criados por esta situação sem precedentes; O Parlamento Europeu, nas duas resoluções de 16 de Março de 1999 sobre questões éticas e jurídicas da engenharia genética e da reprodução artificial humana, proclamou a necessidade de definir o «estatuto jurídico do embrião», primeiro estádio da vida pré-natal, particularmente ameaçado pelas possibilidades de abuso da tecnologia genética. O mesmo vale, em razão de causa idêntica ou análoga, para todos os demais estádios da vida pré-natal. Definir o estatuto jurídico do ser humano não nascido, face à nova realidade criada pela ciência e pela técnica, é sem dúvida uma das exigências mais instantes que se apresentam aos legisladores nos dias de hoje.

2 — A alteração do artigo 66.s, n.9 1, do Código Civil

A legislação portuguesa, tal como a generalidade das legislações, sem afirmar, embora de modo formal, a personalidade jurídica do ser humano não nascido, reconhece-lhe, todavia, expressamente, certos direitos pessoais e patrimoniais. O artigo 24.° da Constituição da República Portuguesa, que consagra o direito à vida, o mais importante dos direitos humanos, abrange sem dúvida o nascituro; por outro lado, na legislação civil são reconhecidos ao nascituro certas capacidades e direitos. Os artigos 1847.°, I854.°e 1855.° do Código Civil prevêem a perfilhação do filho concebido e ainda não nascido, o que implica que ao nascituro pode ser reconhecida pela ordem jurídica uma situação de natureza pessoal. E quanto a direitos patrimoniais, a lei declara que o nascituro pode receber doações —artigo 952.° do Código Civil —e tem capacidade sucessória — artigo 2033.° do mesmo Código.

O artigo 66.° do Código Civil, porém, ao traiar em gerai da personalidade jurídica, dispõe que «a personalidade jurídica [se] adquire no momento do nascimento completo e com vida» (n.° 1) e acrescenta que «os direitos que a lei reconhece aos nascituros dependem do seu nascimento» (n.°2).

O artigo 66.° consagra uma doutrina tradicional de origem romanística. Essa doutrina, com a limitação da personalidade pelo nascimento, suscitou sempre grav«Jes interrogações, por parecer paradoxal reconhecer direitos ao nascituro e não obstante negar a sua personalidade jurídica. As mais subtis conceptual izações foram excogitadas para resolver tecnicamente o paradoxo. Qualquer que seja, porém, o expediente técnico de que se lance mão para desfazer a dificuldade, o que hoje mais importa é compreender as condições históricas que estão na origem desta doutrina e inquirir da sua adequação ou obsolescência face a condições inteiramente novas que caracterizam o1 nosso tempo.

A formulação do artigo .66.° do Código Civil provém historicamente de épocas em que, por défice do conhecimento científico e impossibilidade técnica de aces*so ao nascituro, o nascimento constituía uma. barreira epistémica e prática absoluta, ou quase absoluta, para além da qual não existiam, nem podiam existir, relações sociais com o nascituro. O ser humano não nascido não estava presente na vida social. Ele não era, como hoje, directamente observável; não podia ser objecto imediato de terapêutica médica nem, muito menos, de intervenções cirúrgicas; não estava, por outro lado, exposto a manipulações e utilizações ao serviço de interesses alheios, cuja possibilidade era teoricamente desconhecida ou jazia muito para além dos limites da tecnologia disponível; e se a sua vida dependia de um mínimo de cuidados externos e podia ser posta em risco pela interrupção deles ou por acção violenta e se a segu-