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17 DE JANEIRO DE 1998

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rança dos cuidados devidos ao nascituro constituiu sempre um dos alicerces da organização das sociedades humanas, todavia a tutela e regulamentação jurídica dos seus interesses dependia essencialmente da mediação de outros sujeitos

— a mãe, a família, o grupo social, o Estado—, com os quais se estabeleciam, e não directamente com o nascituro, as relações sociais juridicamente relevantes. Por isso o reconhecimento jurídico dos bens e direitos do ser humano ainda não nascido podia, por um lado, ficar circunscrito a um pequeno número de normas avulsas e, por outro lado, ser conceptualizado como um simples efeito mediato (quando não como mero reflexo) da tutela imediata dos bens e direitos desses outros sujeitos. Tal era a lógica, expressa ou implícita, da maioria das construções tradicionais da tutela jurídica dos direitos e interesses dos nascituros, nos lermos das quais ela não decorria de um reconhecimento de personalidade jurídica, mas apenas, por via meramente indirecta, da tutela primária de direitos e interesses dos progenitores, da família ou da sociedade no seu todo, representada pelo Estado.

Esta situação histórica está hoje radicalmente ultrapassada. Os progressos da ciência e o desenvolvimento vertiginoso dos instrumentos técnicos que dão acesso imediato à vida intra-uterina possibilitam agora um leque crescente de vias de conhecimento, contacto e acção sobre o ser humano não nascido — desde a simples observação e diagnóstico até à intervenção terapêutica e cirúrgica em fases de desenvolvimento cada vez mais precoces, e que num futuro próximo recuarão até ao período embrionário e descerão na escala biológica até ao nível genético. E no horizonte das possibilidades técnicas, depois da fecundação in vitro, perfila-se já como hipótese viável a própria gestação integral em ambiente extra-uterino, na qual os conceitos que nos são tão familiares de parto e de nascimento pura e simplesmente deixarão de ter sentido.

Assim, e independentemente da magna questão da admissibilidade ética de tudo o que seja tecnicamente possível, os progressos já realizados e quotidianamente aplicados constituem o ser humano não nascido num complexo inteiramente novo de relações sociais, económicas e culturais. Relações que de dia para dia se multiplicam e se aprofundam, e que já hoje se não distinguem qualitativamente das que outrora existiam apenas após o nascimento. Em múltiplas áreas de eminente relevância ética e jurídica, o'ser humano não nascido está agora presente na vida social com toda a visibilidade e imediatidade que eram dantes propriedades exclusivas do ser humano nascido. Existe agora, em desenvolvimento irreversível e sem limites previsíveis: um complexo de processos de interacção social com o ser humano não nascido e que produzem efeitos relevantes em todos ou quase todos os domínios em que habitualmente se processam as relações jurídicas — nas relações pessoais e familiares, na esfera das actividades económicas, em especial das associadas à medicina e à investigação científica e tecnológica, na solução —crescentemente jurisdicionali-zada :—de conflitos de interesses, na actuação, administrativa do Estado, mormente na vertente da assistência, da previdência e do fornecimento de serviços hospitalares, para não falar já no processo legislativo que se vai desenvolvendo, preparado e acompanhado por amplo debate político.

Isto significa que foi derrubada a barreira epistémica e prática que o nascimento constitui durante toda a história humana conhecida. E que desapareceu a base empírica da oposição fundamental entre o ser nascido — visível e imediatamente presente na vida social — e o ser não nascido

— inacessível e oculto—, «que, na tradição histórica do

direito civil, era a razão de ser última da definição do nascimento como início da personalidade jurídica.

Esta evolução, que terá efeitos cruciais em toda a história futura das sociedades humanas, traduz-se desde já em necessidades novas de tutela e regulamentação jurídicas, que não têm, nem podiam ter, precedente na época em que o ser humano não nascido permanecia oculto e inacessível por detrás da cortina opaca do nascimento. Nos mais diversos quadrantes das ciências e das Weltanscháuungen, compreende-se com cada vez maior evidência e unanimidade que, para dar resposta adequada a essas necessidades' de tutela jurídica, não bastará acumular, em número multiplicado, regulamentações avulsas e fragmentárias, à semelhança das que a tradição do direito civil elaborou para contextos muito circunscritos, e que de pouco servirão também as soluções oblíquas conhecidas dessa tradição e nas quais outros Sujeitos de direito apareciam como suportes exclusivos de uma construção jurídica que só mediata ou reflexamente atingia e beneficiava o próprio nascituro.

O ser humano não nascido aparece agora, e aparecerá no futuro, em contextos sociais cada vez mais extensos, como uma entidade ética e jurídica por si mesma e que por si mesma tem de ser considerada. As limitadas vias de tutela indirecta a que o direito civil tem tradicionalmente recorrido para considerar e valorar os interesses e direitos do nascituro são hoje, por isso, de todo insuficientes — tal como o seriam para considerar e valorar os interesses e direitos dos seres humanos após o nascimento, c desde logo das crianças. E tal como se impôs para estas, como base necessária da tutela jurídica, o reconhecimento da sua personalidade plena, assim hoje se impõe —por razões que são inteiramente idênticas do ponto de vista qualitativo e apresentam já uma cada vez mais ampla analogia também do ponto de vista quantitativo— o reconhecimento.da personalidade jurídica dos nascituros.

Só o reconhecimento da personalidade jurídica pode constituir resposta adequada do direito à radical novidade que é doravante a presença imediata e visível, na vida social, do ser humano não nascido.

Estas reflexões conduzem-nos a propor uma alteração do artigo 66.° do Código Civil, preceito que, no título n do Código, abre o subtítulo dedicado às pessoas. Trata-se de reconhecer, por uma reformulação apropriada do n.° 1 do citado artigo, que a personalidade jurídica é co-extensiva com o ser humano,, que a sua origem coincide com a origem deste e que, portanto, se constitui desde a concepção, e não apenas com o nascimento.

Com a plena consagração do princípio da universal e igual dignidade do ser humano na lei civil, reconhece-se a subjectividade jurídica a todo o ser humano enquanto tal, independentemente de condição ou circunstância.

Cumpre sublinhar, para evitar equívocos, que o reconhecimento da personalidade jurídica não contém por si só a atribuição de direitos subjectivos actuais. A subjectividade ou personalidade jurídica é simplesmente a aptidão ou capacidade para ser sujeito de direitos e deveres. Sem dúvida, pressuposta a ideia da dignidade da pessoa humana, à luz da qual toda a pessoa humana goza necessariamente, pelo simples facto de ser pessoa, de certos direitos elementares, o reconhecimento da personalidade vem implicar o reconhecimento desses direitos elementares em que se especifica e desenvolve a dignidade da pessoa: desde logo, o direito à vida, o direito à integridade eo direito a um tratamento digno. Em si mesmo, porém, o reconhecimento da personalidade é apenas a fixação de um princípio ou ideia rectora, fundamenta) ou geral, e que riá-de orientar de modo dura-