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II SÉRIE-A — NÚMERO 24

douro e coerente o desenho de um estatuto jurídico, cujos pormenores ficam para outra normas de âmbito e propósito particulares, e para o labor da jurisprudência e da doutrina, estimulados e orientados pelos processos culturais de que é suporte a comunidade no seu todo.

Trata-se assim, na redefinição proposta do preceito régio do Código Civil, simplesmente de reconhecer no nascituro o valor fundamental da pessoa humana, entendendo este no sentido que é intuitivo para todos quantos participam da nossa cultura e civilização, qualquer que seja a explicitação filosófica, mais ou menos potente, que desse sentido intuitivo acolham e qualquer que seja o modo como o entreteçam no web of belief de uma visão do mundo. Trata-se, em suma, de reconhecer o valor de pessoa, no sentido de reconhecer a dignidade e a intimidade próprias de um ente que é um unicum inviolável e insubstituível: substância individual formada à imagem de Deus, na definição da tradição teológica; fim em si, e que não pode ser degradado, como diz Kant, em simples meio ao serviço de fins extrínsecos; ontologicamente distinto das coisas da natureza e a elas superior em todas as condições e circunstâncias; ser para si. numa linguagem hoje comum, de matriz hegeliana, e antecipada na análise escolástica da pessoa com a distinção entre as dimensões da autonomia —per se esse— e do sentido e valor intrínsecos — propter se esse. Mas é precisamente esta afirmação fundamental do valor de pessoa como base.e princípio organizador de um sistema de normas, este fazer presente à consciência colectiva, na sua expressão formal na lei civil, a ideia reguladora que há-de orientar a compreensão e regulamentação dos aspectos particulares de um estatuto jurídico, aquilo de que se carece urgentemente em todo o domínio, cada vez mais vasto, das novas relações sociais, económicas e culturais que envolvem a vida pré-natal. Cumpre assegurar desde antes do nascimento que o ser humano seja tratado como pessoa, e não como objecto. Não depende do nascimento, e a evolução da ciência e da técnica se encarregará de tornar isso cada vez mais gritantemente óbvio, o reconhecimento pelo direito da proposição ética fundamental que diz que o ser humano não pode ser instrumentalizado como coisa, como mercadoria, como artefacto ao serviço de fins extrínsecos, quaisquer que estes sejam e qualquer que seja a etiqueta com que apareçam rotulados. Em torno dessa verdade essencial se terá-de organizar o estatuto jurídico-civil do ser humano não nascido; e se são imprevisíveis as múltiplas concretizações que, dessa verdade e nesse estatuto, o futuro há-de produzir, muitas das quais, seguramente, se propostas hoje fossem, haveriam de suscitar o mais universal, pasmo e incredulidade, como sempre acontece cm todas as revoluções científicas e técnicas de amplitude comparável!, sem receio de contradita se tem de afirmar desde já que a passagem da ordem jurídica a este nível superior de explicitação do princípio da dignidade da pessoa humana é indispensável e urgente, e há-de ocorrer mais cedo ou mais tarde em todo o mundo civilizado. Explicitação que, de resto, a tradição jurídica não nega, porque, de facto, a prenuncia, embora apenas na medida muito limitada que era oportuna antes daquela revolução científica e tecnológica, quando o evento biológico do nascimento tinha para a regulamentação jurídica o carácter de limiar intransponível que está em vias de perder por completo e de modo decisivo.

3 — A alteração do artigo 66.*, n.° 2, do Código Civil

Não sendo provavelmente indispensável, em absoluto-rigor, intervir no n.° 2 do artigo 66.° do Código, em conse-

quência da redefinição do n." 1, convém, no entanto, fazê--lo para amparar e facilitar o trabalho dos intérpretes e apíica-dores do direito.

Porque há direitos pessoais elementares cujo reconhecimento é necessariamente implicado pelo reconhecimento da subjectividade jurídica, a letra do n.° 2 do artigo 66.°

— que sujeita ou parece sujeitar, à condição do nascimento «[todos] os direitos que a lei reconhece aos nascituros» —, deve ser clarificada (e isto independentemente de qualquer juízo conclusivo sobre a questão de saber se o condicionamento de todos os direitos pelo nascimento, que a letra do preceito sugere, não se encontra já hoje limitado quanto aos direitos pessoais, isto é, se no estado actual do nosso direito a tutela de certos direitos pessoais muito elementares se não deve já conceber como efectiva e actual ex ante —ainda que se processe de forma indirecta e através de outrem — sem necessidade da prévia ocorrência do nascimento). Por esta razão, introduz-se no n.° 2 do artigo 66.° o adjectivo «patrimoniais», tornando claro que o nascimento não condiciona necessariamente os direitos pessoais.

A complexa disciplina dos direitos patrimoniais relativos a sucessões e doações — disciplina que não tem significado de princípio para a questão fundamental do valor de pessoa

— não carece de modificações. Por outro lado, os direitos de natureza pessoal resultantes da perfilhação prevista nos artigos 1847.°, 1854.° e 1855° — e excluídos os de natureza patrimonial, como os sucessórios — podem e devem, nas condições actuais, ser reconhecidos antes do nascimento; e não se carece sequer de uma nova regulamentação instrumental, porque a lei admite já que os processos para o efeito necessários corram durante a gestação. E a verdade é que, no passado, a perfilhação durante a gestação deparava cora dificuldades muito peculiares de processo e prova, que nem por isso foram consideradas impeditivas. Por maioria de razão se há-de prosseguir nesse rumo, agora que as dificuldades — desde as da individualização e descrição (como a de não saber se há um filho ou vários, e de que sexo) até às da prova da paternidade ainda in útero matris— desapareceram em grande parte, e tendem a desaparecer inteiramente.

Há que ter presente, para bem compreender o alcance do esclarecimento proposto para o n.° 2 do artigo 66.°, que a limitação do requisito do nascimento aos direitos patrimoniais em nada prejudicará a interpretação e construção, espécie por espécie, do regime próprio de cada direito pessoal.

Pela sua mesma natureza e economia, a maioria dos direitos pessoais teorizados pela doutrina jurídica contemporânea não se podem constituir antes do nascimento. A nova redacção limita-se, pois, a remover um obstáculo literal (não inultrapassável, mas obstáculo em todo o caso) ao reconhecimento de direitos pessoais in actu antes da ocorrência do facto biológico do nascimento, não significando, porém, de modo algum que todo e qualquer direito pessoal que uma qualquer norma defina, em qualquer ponto da ordem jurídica, tenha como titular possível um nascituro. Significa apenas, do ponto de vista da técnica legislativa, que quando o legislador definir um direito pessoal que, pot sua natureza, possa caber a um nascituro, mas considere que ele não deve ser atribuído antes do nascimento ou pelo nascimento deve ficar condicionado, terá, se quiser evitar dúvidas e deblaterações, de estipular expressamente essa exclusão, em vez de remeter simplesmente para utíya restrição genérica preexistente no Código Civil.