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0359 | II Série A - Número 018 | 09 de Dezembro de 2000

 

seja competente o Tribunal, tal hipótese não é contudo descartável, do mesmo modo que o não poderá nem deverá ser em relação aos outros Estados que ratifiquem o Estatuto. A consideração do conjunto do processo legislativo e das intervenções nele doutros órgão de soberania e do Tribunal Constitucional não chega para de todo neutralizar essa eventualidade, desde logo porque "votos" e "opiniões" poderão, em certas circunstâncias, assumir relevância jurídico-criminal independentemente do concreto desfecho do processo legislativo (isto é, sem necessidade de prévia adopção de lei que, por absurdo, integrasse ou compelisse à prática de um crime internacional).
É que, nos termos do Estatuto, considera-se criminalmente responsável e admite-se expressamente a punição de quem ordene, provoque, instigue ou incite à prática dum crime, ainda que sob a forma de tentativa (artigo 25.º, n.º 3).
Identifica-se, pois, aqui uma primeira linha de conflito entre o Estatuto, e em particular de seu artigo 17.º, e a imunidade consagrada no n.º 1 do artigo 157.º.
Nos demais casos previstos nos n.º 2 e 3 do artigo 157.º da Constituição em que é requerida autorização da Assembleia e esta não é expressamente prevista como obrigatória - o exemplo típico será a autorização da prisão de Deputado fora do flagrante delito - reencontra-se o problema já atrás equacionado. Não podendo conceber-se a actuação da Assembleia como vinculada a um acto externo emanado do Tribunal, há, também neste ponto, colisão entre o disposto no Estatuto, nomeadamente nos artigos 17.º, 86.º, 89.º e as regras constitucionais vigentes (artigo 157.º).
12 - A desconformidade detectada entre soluções consagradas no Estatuto e algumas soluções constitucionais portuguesas indicia que a nossa Constituição, que em 1992 soube incluir elementos de flexibilidade que pareceram necessários para legitimar a prossecução da construção da União Europeia, está agora perante o advento de uma justiça internacional criminal, digna desse nome, sem que possua idêntica "janela".
Um entendimento da soberania genericamente alinhado, pelo menos nalgumas das suas dimensões, por uma fase do direito internacional público agora em vias de ultrapassagem; uma visão da criminalidade, e mesmo da criminalidade internacional, anterior à actual percepção dos crimes internacionais, e em particular dos crimes contra a humanidade e das particulares resposta punitivas por eles reclamadas; regimes de efectivação da responsabilidade criminal de titulares de órgãos de soberania também com alguns problemas de sintonização com as tendências emergentes do direito internacional; uma leitura restritiva da cooperação e da "internacionalização" judiciárias requeridas para o combate aos crimes mais graves, sob pena de ineficácia e de alargamento da impunidade - estas são, em síntese, algumas das fontes das dificuldades constitucionais que a criação do Tribunal e o seu Estatuto simultaneamente defrontam e questionam.
No mundo da integração supranacional e da internacionalização, a reafirmação pura e simples, sem reavaliação, da disciplina constitucional anteriormente fixada poderia traduzir uma defesa perversa do Estado soberano ou do constitucionalismo nacional - na medida em que tal atitude lhes diminuiria necessariamente capacidade de participação e de acção sobre tais processos.
É mais realista reconhecer que, nos dias de hoje, o poder constituinte nacional e por maioria o poder de revisão estão longe de ser poderes inteiramente autónomos, que exclusivamente gravitem em torno do Estado soberano - cifra Canotilho, op. , cit., p. 1202 - e dos seus impulsos internos. Esgotado também no domínio jurisdicional o ciclo do Estado totalizador, o que de uma constituição nacional se tem de esperar é que saiba governar - com o que isso implica de sentido do tempo - a articulação da ordem jurídica nacional com as ordens jurídicas supranacionais em construção (regionais e internacionais). Esta regulação é, porventura, uma das tarefas mais características do constitucionalismo nacional nos dias de hoje e uma das chaves da sua supremacia.
13 - Nesta linha, a assinatura do Tratado de Roma e a instituição do Tribunal colocam na agenda constitucional portuguesa, como aliás aconteceu noutros países - assim aconteceu em França, onde a Li Constitucional n.º 99-568, de 8 de Julho de 1999, fez inserir ,no Título VI da Constituição um artigo 53-2, assim redigido, La Repúblique peut reconnâitre la juridiction de la Cour pénale internationale dans les conditions prévues par le Traité signé de 18 Juillet 1998 (esta revisão seguiu-se ao reconhecimento, pelo Conselho Constitucional, da incompatibilidade entre o Estatuto e a Constituição) -, uma alternativa simples: opt-in ou opt-out, escolher entre estar "dentro do tempo" do nascimento da justiça internacional penal ou ficar fora dele.
Uma Constituição como a nossa, que, para utilizar a linguagem de Tomushat, é uma Constituição não só "amiga dos direitos do homem" como "amiga do direito internacional", não pode alhear-se ou dissociar-se deste passo decisivo para a construção de uma efectiva e permanente justiça criminal internacional e da particular comunidade de direito que com ela se institui.
A criação do Tribunal, como tem sido assinalado - vide Reflections, cit., passim -,corresponde a um novo patamar na protecção internacional dos direitos do homem, na luta milenária contra a impunidade dos poderosos, na responsabilização dos que utilizam posições de supremacia, nomeadamente de Estado, para praticar crimes graves - e que até agora tem ficado geralmente impunes, mesmo no passado recente.
Por outro lado, o Estatuto do Tribunal - que é fruto de laboriosos, participados e muito qualificados trabalhos preparatórios (vide Bourdon, W., La Cour Pénale Internationale, Paris 2000, p. 13 e seguintes - consegue uma solução criativa que parece dotá-lo de características e requisitos indispensáveis para se afirmar e exercer uma influência profunda na evolução da comunidade internacional. É o caso do princípio da complementaridade; da concentração num número limitado de crimes graves (core crimes), susceptível de evolução, da fundamentação das incriminações no direito internacional e não em direitos estaduais, e da consagração geral do movimento registado em instrumentos recentes do direito convencional penal no sentido da "irrelevância da qualidade oficial" dos responsáveis.
Portugal não tem, pois, que se arrepender de ter votado e assinado o Estatuto de Roma, nem qualquer motivo de fundo para, perante a comunidade internacional, venire contra factum proprium. Deve antes criar de uma forma consciente as condições para se poder tornar um Estado parte de uma forma constitucionalmente autorizada e assim contribuir também para a rápida entrada em vigor do Tratado - até para não se perder o que é um momentum internacional