0355 | II Série A - Número 018 | 09 de Dezembro de 2000
ser direito internacional e não direito estadual - podendo assim não existir, e com frequência não existindo, continuidade, pelo menos na fase actual, entre princípios, normas e, sobretudo, tipos criminais acolhidos num e noutros. Quanto mais uma ordem jurídico-criminal estiver afastada do direito internacional a aplicar pelo Tribunal, maior será, pois, a margem de intervenção deste.
Assim, se já não seria exacto, pelo que fica dito, conceber o Tribunal como uma "extensão" do sistema judicial nacional, será inexacto também reduzir o sistema prefigurado no Estatuto a uma "extensão" do sistema penal nacional. É de algo mais e de diferente que se trata: o Tribunal vem dotar o emergente "sistema jurídico internacional dos direitos do homem"(Canotilho) de uma instância de justiça penal própria, ampliando as suas possibilidades de acção, directa e reflexivamente, sobre os sistemas nacionais.
Até agora, ou até há bem pouco, podia fazer-se o ponto da situação do direito internacional reconhecendo que "a definição e a repressão dos crimes internacionais cabe ainda, no momento actual do direito internacional, aos Estados e que as normas do direito internacional que as contemplam não se projectam directamente na esfera jurídica dos indivíduos" - Pereira, A G. e Quadros, F. cit. p. 385. Com a entrada em funcionamento do Tribunal, como instância permanente, dotada de "imediatividade" (idem, p. 416) e proferido decisões self executing - cifra, em especial, o artigo 105.º, n.º 1, ode se estabelece que "a pena privativa da liberdade adquirirá força executória para os Estados parte, não podendo estes modificá-la em caso algum" - será virada a página e desactualizado tal diagnóstico.
4 - O Estatuto ocupa-se, sucessiva e extensivamente, da criação do Tribunal, competência, admissibilidade e direito aplicável, princípios gerais de direito penal, composição e administração do Tribunal, tramitação processual, julgamento, penas, recurso e revisão, cooperação internacional e auxílio judiciário, execução da pena, assembleia dos Estados parte e financiamento.
Dado o objectivo prosseguido nesta análise, far-se-á de seguida uma exposição circunscrita, no essencial, às soluções constantes do Estatuto susceptíveis de conflituar com normas da Constituição e, por isso, relevantes para a avaliação em vista.
5 - Verificados determinados requisitos, nem todos controláveis pelo Estado português, o Tribunal poderá julgar crimes, previstos no Estatuto, praticados em território português, nomeadamente por nacionais e, dentre estes, por titulares de órgãos de soberania da República Portuguesa. Uma grande parte dos crimes que o Tribunal tem competência para julgar supõe mesmo que os respectivos autores ou suspeitos se encontrem investidos em funções estaduais ou semelhantes.
A intervenção do Tribunal pode ser desencadeada (trigger mechanism) - Arsansani, M. Reflections in the Jurisdiction and Trigger Mechanism, in Reflection, p. 57 e seguintes, artigo 13.º do Estatuto - apor iniciativa de um Estado parte, do Procurador do Tribunal ou do Conselho de Segurança das Nações Unidas (com a particularidade de, neste último caso, as situações denunciadas não necessitarem de preencher qualquer requisito de nacionalidade ou territorialidade em relação a um Estado parte). Apesar de se encontrar previsto um procedimento de deference - artigo 19.º do Estatuto sobre a questão da "deferência para com a jurisdição nacional", v. Arbour, L. e Bergsmo, Conspicual Absence of Jurisdictional overreach in Reflections - em direcção às jurisdições nacionais, que pode conduzir a que os casos venham a ser julgados nestas, isso não ocorrerá quando o Tribunal entenda que o Estado "não tem vontade" ou "não tem capacidade efectiva" para julgar os crimes, relevando para esse efeito "a demora injustificada no processamento", a ausência de independência ou imparcialidade na condução do processo ou, ainda, a verificação da situação de "colapso total ou substancial da respectiva administração da justiça ou indisponibilidade desta" (artigo 17.º do Estatuto - para Arbour e Bergsmo, cit, o "colapso parcial" é suficiente para legitimar a intervenção do Tribunal, p.131 -, para além, obviamente, da adequação do direito interno ao direito internacional aplicável pelo Tribunal.
Isto significa que fica claramente prevista a possibilidade do Tribunal, sem a iniciativa do Estado parte, mesmo contra a sua vontade ou ponto de vista no caso concreto, julgar crimes cometidos em território nacional por nacionais, por hipótese até detentores de qualidades oficiais - nomeadamente ordenando prisões e impondo penas a nacionais, a cumprir noutros Estados, através de decisões punitivas com "força obrigatória para os Estados parte, não podendo estes modificá-las em caso algum" - artigos 53.º, 86.º, 89.º, 103.º e 105.º do Estatuto.
6 - O poder de um Estado exercer jurisdição sobre os crimes cometidos no seu território é um atributo essencial da soberania - Hillier, T., Sourcebook on Public International Law, Londres, 1998, p. 254. Só poderá mesmo falar-se de Estado soberano quando se esteja perante uma "afirmação de poder ou supremacia dentro de determinado território concretamente traduzido no exercício de competências soberanas: legislação, jurisdição e administração" - Canotilho, op., cit., p. 1218. Também Evans, in The Transformation of democracy? Globalisation and Territorial Democracy, ed. ª McGren, 1997, p. 122, The fundamental principle of international relations is sovereignty, which includes domestic jurisdictions.
Não custa perceber que a dimensão jurisdicional da soberania se revela um domínio particularmente sensível quando possam estar em causa actos de responsáveis públicos ou titulares de órgãos de soberania, e, muito em especial, daqueles a quem cabe representar os Estados. Daí que o direito internacional clássico tenha desenvolvido uma vasta doutrina sobre imunidades, ratione personae e ratione materiae, cujo racional decorre do objectivo de salvaguardar, directa e reflexamente, a própria soberania do Estado, evitando qualquer situação que pudesse sugerir que a sua vontade admitia sujeição a outros tribunais que não os seus.
A Constituição identifica Portugal como uma República soberana (artigo 1.º) e os tribunais como órgãos de soberania, a quem cabe administrar a justiça, relevando neste caso a justiça penal, em nome do povo (artigo 202.º, n.º 1).
O Tribunal criado pelo Estatuto, ou a categoria a que se deva inserir, não se encontra directa ou indirectamente previsto ou admitido no texto constitucional (artigo 209.º e seguintes) e a esfera jurisdicional que lhe é atribuída virá reduzir, correlativamente, a dimensão de soberania constitucionalmente deferida aos tribunais - órgãos de soberania, no Capítulo V da Constituição. Com o Estatuto, a "competência soberana" (Canotilho) do Estado Português que a jurisdição