0817 | II Série A - Número 027 | 03 de Outubro de 2002
ponto da Comissão de Narcóticos do Conselho Económico e Social das Nações Unidas considerar toda a África como uma região de trânsito. Alguns países produtores, cujas circunstâncias tinham mudado nos últimos anos prejudicando a produção, voltam entretanto a produzir heroína, como é o caso do Afeganistão. O relatório aprovado em Viena em Março de 1999 dá outros exemplos deste fenómeno, como a expansão dos circuitos de tráfico a todo o continente americano e a cada vez mais complexa rota balcânica, que envolve novos países.
A Europa continua a ser a maior zona de destino de heroína, embora o mercado dê sinais de saturação, com a estabilização - e mesmo o recuo, em certos países - do consumo. Várias razões são apontadas para esta tendência aparente. O Observatório Geopolítico das Drogas (OGD) sugere que este fenómeno diz apenas respeito às comunidades marginalizadas, que consomem heroína injectada. Por outro lado, desenvolve-se um novo mercado de consumo por parte de cidadãos integrados socialmente, que fumam heroína com elevado grau de pureza, sem a ocorrência de crime associado ao consumo ou recurso aos serviços de saúde. Mantendo-se fora das estatísticas oficiais, o perfil destes consumidores só é conhecido pelos seus fornecedores.
Os novos mercados da heroína mostram a mudança no funcionamento das redes do narcotráfico. Os Estados Unidos - que representam o segundo maior destino mundial - continuam a braços com o aumento do consumo, no momento em que as redes latino-americanas que abastecem o país de cocaína vão ganhando terreno na distribuição de heroína. Segundo dados publicados pela Interpol, a heroína mexicana representa já 5% do mercado total norte-americano. Da mesma forma, já não é novidade a apreensão em solo europeu de heroína produzida na Colômbia. O relatório do OGD referente a 1998 alerta para o facto deste politráfico não se restringir apenas às drogas ilegais, mas a tudo o que tem procura e margens de lucro generosas: é o caso dos materiais nucleares na Rússia e na Turquia; das armas nos Balcãs e em África; dos cigarros na Europa, Ásia ou América Latina; dos automóveis roubados na Europa de Leste ou Médio Oriente; ou dos imigrantes ilegais para a Europa ou Estados Unidos.
O fracasso da política de "guerra à droga":
Durante anos a política oficial sobre toxicodependência resumia-se a um apelo belicista: a "guerra às drogas" devia conduzir a uma sociedade sem drogas. O resultado foi um fracasso catastrófico. Como explicava recentemente uma das grandes revistas científicas de referência no campo da medicina, The Lancet:
"É compreensível que os americanos tenham dúvidas sobre a "guerra às drogas". Desde os anos 70 os USA gastaram biliões de dólares num esforço essencialmente fútil para parar o influxo de drogas, aprisionaram centenas de milhares de homens e mulheres, impondo a muitos homens e mulheres longas sentenças de prisão por ofensas menores, e gastaram biliões em campanhas de escasso impacto através dos média e do sistema de educação. Se bem que os apoiantes desta abordagem agressiva argumentem com o facto de que o uso de drogas nos USA foi reduzido desde os seus picos dos finais dos 70 e 80, o abuso de drogas ilegais e de drogas prescritas é ainda difundido e manteve-se essencialmente sem alterações nos últimos anos. Parece assim que esta abordagem, se pode ser creditada pela diminuição do uso de drogas, está esgotada." (editorial de 31 Março de 2001).
Continua o mesmo editorial do The Lancet:
"A alternativa é tratar o abuso de drogas como um problema de saúde pública. Tal abordagem exige o redireccionamento de muitos dos recursos legais actualmente em uso. O acesso ao tratamento, por exemplo, deve ser muito ampliado. Tem sido calculado que somente um em cada quatro das pessoas que necessitam de tratamento a dependência do álcool e drogas tem acesso aos programas nos USA. Assim, é necessário um grande aumento na despesa com os tratamentos, e deve ser aprovada legislação exigindo às seguradoras privadas que cubram adequadamente as despesas com tratamento por toxicodependência. (...) Finalmente, é necessária mais investigação para compreender a biologia, a psicologia, e a sociologia do abuso de drogas. Obviamente, isto será um esforço enorme, e que exigirá muita coragem política. Mas estudo atrás de estudo tem vindo a demonstrar que o tratamento e a prevenção ajudam muito mais pessoas a um custo muito menor do que as medidas correntes. É tempo de que a América ultrapasse a sua cruzada moral e adopte uma abordagem de saúde pública para o problema do abuso de drogas, uma abordagem que é muito mais provável que seja bem sucedida e que será certamente mais humana."
Ora, o problema dos Estados Unidos é sensivelmente o mesmo que se vive na Europa, e foi essa tomada de consciência que determinou alterações significativas na abordagem dominante. Em Portugal a nova política para a toxicodependência constitui uma das mais importantes decisões da anterior legislatura, decidindo privilegiar o tratamento do toxicodependente em detrimento das políticas criminalizadoras então em vigor.
Essa nova política de descriminalização do consumo respondia a uma necessidade e a uma urgência. Ao conduzir a questão da toxicodependência à autoridade policial, judicial ou prisional, as políticas anteriores condenavam-se à incompetência e inoperacionalidade, tendo como único resultado o aumento da população prisional e tendo efeito nulo em termos de prevenção, de redução de riscos ou mesmo de tratamento. Ora, o resultado destas políticas tinha sido que Portugal, em termos relativos, passara a ser o país europeu com maior taxa de incidência da toxicodependência e, entre os toxicodependentes, de maior grau de contaminação por doenças infecto-contagiosas. Era urgente adoptar outras políticas mais eficientes.
Por isso, a nova política de descriminalização do consumo foi geralmente aceite por técnicos, terapeutas, comunidades, doentes e famílias, apesar do protesto da direita que anunciou um referendo para o qual depois não conseguiu suficiente apoio popular. A população portuguesa entendeu, aceitou e apoiou esta nova orientação que procura tratar a toxicodependência como uma doença e não como um crime.
Ao longo do período de aplicação da nova legislação, verificou-se que esse consenso maioritário tornava necessário aplicar novas medidas, nomeadamente no âmbito da prevenção e redução de riscos. Nesse sentido, o Bloco de Esquerda levou a discussão em plenário da Assembleia da República, em 2001, um projecto de criação de salas de injecção assistida. Pretendia-se, com a aprovação dessa medida, evitar as overdoses e a contaminação dos toxicodependentes