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2634 | II Série A - Número 064 | 29 de Maio de 2004

 

A origem do problema da guetização dos descendentes de imigrantes não se resume apenas ao carácter excludente patente na legislação que regula a aquisição da nacionalidade. De facto, toda a legislação relacionada com o acesso a estatuto legal por cidadãos estrangeiros, a legislação laboral, as políticas de acesso à habitação e à protecção social representam obstáculos imensos a qualquer perspectiva de integração quando promovem a clandestinização e precarização e não garantem a igualdade de direitos quer a imigrantes quer aos seus descendentes. Este tipo de políticas, assim como um modelo de escola monocultural e normalizadora incapaz de reconhecer a diferença como um elemento natural e enriquecedor de qualquer objectivo educativo, tem acabado por perpetuar e reproduzir os elevados níveis de estigmatização e isolamento social verificados entre as chamadas "segundas gerações" de imigrantes.
No entanto, a negação da nacionalidade portuguesa àqueles que aqui nasceram assume uma gravidade que não deverá ser ignorada ou minimizada: representa um obstáculo simbólico e factual à construção de um salutar sentimento de pertença por estas crianças e jovens por que lhes transmite, por força de lei, que não podem ser consideradas portuguesas e presume que têm uma terra de origem à qual podem ou devem voltar, em determinadas circunstâncias. A realidade social tem demonstrado que esta asserção, para além de ser injusta, não corresponde à vontade e à vida concreta destas crianças e jovens. Muitos daqueles que pertencem às chamadas "segundas gerações de imigrantes", principalmente no que diz respeito a imigrantes provenientes das ex-colónias, não se sentem, por exemplo, caboverdianos/as ou angolanos/as (ou uma outra qualquer nacionalidade de origem dos pais), mas também não são reconhecidos/as como portugueses/as. São remetidos por isso a autênticas "ilhas" urbanas relativamente às quais lhes é permitido desenvolver sentimento de pertença. Não têm verdadeiramente liberdade para construir a sua própria identidade, o que constitui um elemento importante de segregação social. Rui Pena Pires ("Conceber uma Nação cosmopolita", em "Economia Pura", de Setembro de 2000) alerta para o facto da etnicidade, nestes casos, não se basear "numa qualquer identidade transportada pelos imigrantes desde os seus países de origem" e dos processos de etnicização da imigração resultarem sobretudo em "confrontos sociais identitários durante o processo de integração", o que "ganha particular acuidade no caso dos descendentes de imigrantes africanos nascidos e socializados em Portugal, sem projectos de regresso a um país de origem pouco ou nada conhecido". O autor refere, ainda, que da "identidade étnica pode, então, passar-se à politização da etnicidade".
O critério do jus sanguinis está assente, antes de mais, na ideia de nação homogénea do ponto vista cultural e numa concepção étnica de pertença, mais do que numa concepção política de pertença. Trata-se de uma concepção que, partindo de uma lógica de não contaminação da cultura nacional, acaba por fomentar a segregação institucional e, consequentemente, social.
Também o constitucionalista Vital Moreira teceu fortes críticas à actual Lei da Nacionalidade. Num artigo de opinião publicado na edição de 7 de Janeiro de 2003, no Jornal Público, considera que a actual Lei da Nacionalidade tem dois efeitos nocivos. Por um lado, "permite manter artificialmente como portugueses, com os direitos inerentes (incluindo direitos eleitorais), pessoas que não têm a mínima ligação a Portugal, só porque os pais (ou eles mesmos, chegando à maioridade) viram alguma razão, sentimental ou interesseira, na manutenção da nacionalidade" e, por outro, "mantenham como estrangeiros pessoas que nasceram no país, que sempre cá viveram, que nunca conheceram outro país, que cá foram escolarizadas, que se sentem tão portuguesas como quaisquer outras e, sobretudo, que não têm nenhuma relação com outro país, incluindo o país (ou países) dos seus progenitores." Vital Moreira defende que "a nacionalidade não deve continuar a ser uma questão de herança de sangue" e que "não pode depender da situação dos seus progenitores, desde logo por uma razão de igualdade". Advoga por isso o reconhecimento automático da "nacionalidade portuguesa a todas as pessoas nascidas no País, incluindo os filhos de estrangeiros estabelecidos em Portugal, salvo, portanto, os que tenham nascido ocasionalmente aqui".
A análise comparada dos quadros legislativos sobre direito de nacionalidade permite a identificação de opções diversificadas. Países com uma forte tradição de imigração, como os Estados Unidos da América, Brasil ou a França, têm uma legislação baseada na tradição do chamado "direito de solo". Na França o princípio do direito de solo foi introduzido em 1889, tendo por isso uma longa tradição. Até 1993 um filho de estrangeiro que tivesse nascido em território francês acedia à cidadania francesa, embora só ao atingir a maioridade, com vista ao exercício de cidadania política. Mesmo as alterações introduzidas pelo governo conservador de então não impediam o acesso a cidadania francesa pelas segundas gerações de imigrantes, apenas impunham um mecanismo de manifestação de vontade. O espírito inicial da lei acabou por ser reposto em 1998, com a mudança de Governo.
A lei brasileira valoriza os dois critérios, reconhecendo a nacionalidade brasileira quer aos nascidos no Brasil, ainda que de pais estrangeiros e desde que não residam estes a serviço de seu país, quer aos filhos de brasileiro ou brasileira, nascidos no estrangeiro, se os pais estiverem a serviço do Brasil, ou, não o estando, se vierem residir no país.
A cláusula de cidadania da 14.ª Emenda da Constituição dos Estados Unidos assume que "todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos, e sujeitas à sua jurisdição, são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado onde residem", adoptando assim o princípio do jus soli, desde 1868.
A Alemanha, um país onde até 2000 vigorava o princípio do jus sanguinis, evoluiu no sentido de introduzir o direito à nacionalidade alemã pelas segundas gerações de imigrantes e de reduzir o tempo de residência exigido para aceder à nacionalidade alemã (de quinze para oito anos). Aos 18 anos o jovem tem o direito a escolher entre a nacionalidade alemã e a dos seus progenitores. Tratou-se de uma evolução positiva no sentido da integração dos imigrantes, embora o acesso à nacionalidade alemã pelas segundas gerações de imigrantes dependa do número de anos de residência dos pais, o que constitui um constrangimento ao princípio do direito de solo.