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21 DE DEZEMBRO DE 2018

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como as instigadoras, provocadoras, sedutoras, que “se puseram a jeito” e que “estavam a pedi-las”.

A lei atual possibilita ainda que as decisões judiciais mascarem violações com abusos sexuais, crimes

‘socialmente’ menos valorizados e reprováveis.

Argumentos como os do acórdão da «sedução mútua», relativo à violação de uma mulher inconsciente, por

dois homens, porteiro e barmen, numa casa de banho de uma discoteca no Porto, é prova disso mesmo. O

facto de a vítima ter estado previamente a dançar justificou o argumento de «ambiente de sedução mútua». O

acórdão argumenta ainda que não terá existido violência e que do ato não resultaram danos de gravidade

importante para a vítima que, recorde-se, estava inconsciente. Estes foram os argumentos que justificaram a

consideração por um crime de abuso sexual e não de violação, crime este, apesar de tudo, socialmente mais

reprovável.

Saliente-se ainda que o recurso às penas suspensas a agressores condenados por crimes sexuais

continua a ser a norma. De acordo com dados do Ministério da Justiça, em 2016, das 404 condenações por

crimes sexuais a pena suspensa foi aplicada a 58% dos casos. Também entre 2015 e 2016, 30% dos

condenados por violação ficaram fora da prisão.

Todos estes indicadores contribuem de forma decisiva para que se chegue à conclusão de que se

transmite um sentimento de impunidade quanto a este tipo de crimes, não só para os agentes do crime, como

também para as vítimas e para a sociedade em geral e que, portanto, a força da censura de ultima ratio não

tem tido a contundência suficiente.

A desculpabilização e naturalização destes crimes, assim como a responsabilização e objetificação das

mulheres – que, aliás, ficam bem patentes nas decisões judiciais acima citadas – radicam e, simultaneamente,

justificam a cultura de tolerância e desvalorização dos crimes sexuais sobre as mulheres que,

lamentavelmente, ainda persiste na sociedade portuguesa.

A lei não tem o condão de mudar, de forma automática e imediata, perceções e valores, mas não se pode

ignorar que detém, ainda assim, um papel impulsionador de mudança cultural de considerável importância.

Eis as condicionantes atuais que norteiam a exigência de fazer reconhecer que um ato sexual sem

consentimento é um crime de violação ou de coação sexual. É no não consentimento que radica a violência do

ato e a natureza do crime. Neste sentido, a existência de violência ou ameaça grave não devem ser meios

típicos de constrangimento, mas circunstâncias agravantes da pena.

Com efeito, a exigência de um processo cumulativo de violência (o agressor que só o é quando exerce

violência, a vítima que só o é quando dá provas de lhe resistir, preferencialmente com violência) destitui o

cerne da sua natureza: um ato sexual não consentido é, de per si, um ato de violência. É, pois, no “não

consentimento” que se configura o atentado à autodeterminação e liberdade sexual, e as demais formas de

violência usadas para a consecução do ato só podem ser entendidas como agravantes.

Surge, então, o comando do artigo 36.º da Convenção de Istambul que, com a epígrafe, “violência sexual,

incluindo violação”, insta à revisão dos quadros legais no sentido da criminalização de todas as condutas

intencionais que impliquem penetração (vaginal, anal ou oral) não consentida, bem como de outros atos, de

caráter sexual, não consentidos. A advertência estende-se à necessidade de criminalizar estes atos quando

praticados por cônjuges, ex-cônjuges ou outros parceiros. Numa palavra: tratar as coisas como elas são,

punir-se pelo crime praticado e não deixando margem para dúvidas que, sempre que não haja consentimento,

estamos perante uma violação.

A presente proposta do Bloco de Esquerda dá corpo às recomendações da Convenção de Istambul. O

crime de violação é avaliado pelo não consentimento, e extirpado de todas as tipificações que ocultam, hoje, a

sua verdadeira dimensão, onerando as vítimas. E, apesar do debate sobre a necessidade de validar a

autonomia deste crime na lei (quando a “violação” é, afinal, uma manifestação de violência sexual), é nosso

entendimento que a sua preservação dá um sinal mais claro do conjunto de mudanças que estão por fazer.

Por outro, procede-se à eliminação do n.º 2 do Artigo 164.º previsto no atual Código Penal, pelos equívocos

que estabelece, como se houvesse uma legitimação da violação pelo uso da autoridade ou da dependência,

eliminando ambiguidades interpretativas e esta incompreensível gradação de um crime que, em qualquer dos

casos, é cometido “sem consentimento”. Finalmente, reconhecendo-se os limites etários para o

consentimento, no âmbito do Código Penal, mantêm-se as circunstâncias agravantes para os menores de 16

anos, conforme previsão do artigo 177.º do mesmo Código.