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II SÉRIE-A — NÚMERO 39

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O princípio da oficialidade vale de modo pleno relativamente aos crimes públicos, mas conhece as

limitações decorrentes da consagração generosa da necessidade de queixa do ofendido para a instauração do

procedimento criminal e, com menor frequência, da exigência de acusação particular para a sujeição do caso a

julgamento2.

Tais desvios à oficialidade têm sido explicados fazendo apelo a vários critérios, nomeadamente a menor

gravidade de certos ilícitos, a qual tornaria desnecessária a intervenção punitiva estadual se o ofendido a não

reclamar, supondo-se ainda que o reduzido desvalor da conduta não causa significativo abalo comunitário.

Mas, por outro lado e mesmo em crimes mais graves, a exigência de queixa configura-se ainda como um

reconhecimento da autonomia da vontade do ofendido em não ver expostas no processo penal questões que,

por serem eminentemente atinentes à sua intimidade ou à sua privacidade, poderiam com a sua revisitação

num processo penal indesejado levar a uma intensificação ou a uma revisitação da ofensa. Ou seja: os crimes

particulares em sentido amplo não são, necessariamente, apenas os crimes menos graves. Haverá casos em

que se poderá entender que, apesar da manifesta gravidade do crime, a existência do processo criminal

deverá depender da queixa do ofendido, mormente porque um processo indesejado lhe causará uma

desproporcionada vitimização secundária e porque o seu interesse na modelação da resposta ao crime é

preponderante face ao interesse comunitário na punição.

A opção sobre a natureza processual de vários crimes voltou a ser objeto de controvérsia político-criminal a

propósito de crimes como a coação sexual e violação, relativamente aos quais se vem assistindo a uma

tendência para o fortalecimento da componente pública ainda que, paradoxalmente, com o argumento da

necessidade de proteção da vítima concreta.

Quanto aos crimes de coação sexual e de violação, passou desde 2015 a dispor-se no n.º 2 do artigo 178.º

do Código Penal que «quando o procedimento pelos crimes previstos nos artigos 163.º e 164.º depender de

queixa, o Ministério Público pode dar início ao mesmo, no prazo de seis meses a contar da data em que tiver

tido conhecimento do facto e dos seus autores, sempre que o interesse da vítima o aconselhe»3.

De forma propositadamente simplificada, pode afirmar-se que um crime deve ser público quando o

interesse comunitário na persecução penal se sobrepuser ao interesse do concreto ofendido na existência ou

não de um processo penal e que, pelo contrário, um crime deverá ser particular em sentido amplo sempre que

se dever outorgar preponderância à vontade do ofendido quanto à existência do processo penal,

secundarizando o interesse comunitário. Sob este enfoque, parece paradoxal que, para proteção dos

interesses das vítimas adultas de crimes de coação sexual e de violação, se outorgue ao crime uma natureza

pública. Pior: acredita-se que há vários motivos para recear que esta se revele uma opção contraproducente à

luz dos interesses das vítimas destes crimes.

Não é por se ver nos crimes contra a liberdade sexual crimes menos graves que se optou por fazer

depender de queixa o procedimento criminal – com algumas exceções, nomeadamente quando tais crimes

forem praticados contra menores. Podem existir crimes graves – como o crime de violação – em que o

legislador conclui que a resposta punitiva não deve dar-se com alheamento pela vontade do ofendido,

precisamente porque as características da infração e a sua atinência a espaços de intimidade são adequadas

a gerar uma vitimização secundária que deve considerar-se inaceitável. A ponderação das vantagens

associadas a não atribuir carácter sobretudo público a crimes como o de violação não se funda, pois, na

afirmação da menor gravidade das condutas, mas sim, pelo contrário, na verificação de que tais condutas

muito graves devem merecer a resposta pública alcançada através do processo penal sempre que – mas

apenas quando – as vítimas o não considerarem insuportável.

No âmbito do Conselho da Europa, foi adotada em 2011 a Convenção de Istambul – Convenção para a

sobretudo p. 103 ss.

2 Na opinião de José de FARIA COSTA, a existência de crimes particulares em sentido estrito é «um dos afloramentos mais expressivos e sintomáticos do horizonte do consenso» (ideia que pode ser, pelo menos até certo ponto, aplicável aos crimes semipúblicos). Todavia, julga-se que, diversamente do que sucede com a suspensão provisória do processo ou com o processo sumaríssimo, esse consenso ocorre de certo modo «à margem» do processo penal. A especificidade desse consenso inerente aos crimes particulares é vista pelo Autor também como «um reforço da componente vitimológica na apreciação e realização da justiça» – é reconhecido por José de FARIA COSTA, (inComentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Dir. Jorge de Figueiredo Dias, comentário do artigo 207.º CP, Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p. 124).

3 Esta redação foi introduzida pela Lei n.º 83/2015, de 5 de agosto.