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6 DE SETEMBRO DE 2022

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As imagens íntimas da vítima podem chegar ao autor da sua divulgação não autorizada por diversas vias.

Se há casos em que é a própria vítima que envia tais imagens ao futuro agressor, com frequência no contexto

de uma relação íntima já existente ou desejada, em outras hipóteses tais imagens são obtidas contra a

vontade da vítima, por exemplo através de um acesso indevido ao seu computador ou ao seu telefone móvel

ou ainda graças ao aproveitamento de situações de vulnerabilidade ou inconsciência da vítima, que está sob o

efeito de álcool ou drogas ou a dormir. Em outras hipóteses a pessoa é filmada ou fotografada enquanto está a

ser vítima de um crime como o crime de violação. São ainda conhecidos casos de sobreposição do rosto da

vítima a imagens pornográficas anteriormente produzidas.

As imagens íntimas cuja divulgação não foi consentida podem ser objeto de publicação online, por exemplo

nas redes sociais ou em sites dedicados à pornografia, nomeadamente a de vingança, mas podem também

ser divulgadas por vias mais tradicionais, como a partilha de fotografias ou filmes num determinado círculo de

pessoas, que podem ser próximas da vítima, por exemplo familiares ou colegas de escola ou de trabalho.

Em Portugal, estas condutas podem constituir um crime contra a reserva da vida privada (o crime de

devassa da vida privada está previsto no artigo 192.º do Código Penal e as penas aí previstas podem ser

agravadas nos termos do artigo 197.º) ou podem consubstanciar um crime de violência doméstica, previsto no

artigo 152.º do Código Penal, caso o agente cause danos físicos ou psicológicos, através da divulgação não

autorizada de imagens íntimas, a alguém com quem tenha (ou tenha tido) uma das ligações descritas na

norma incriminadora.

O primeiro problema suscitado por esta iniciativa legislativa prende-se, portanto, com a intenção de passar

a subsumir a conduta num tipo legal de crime inserido no capítulo dos crimes contra a liberdade e

autodeterminação sexual. Tal solução contraria, como se notava no parecer do Conselho Superior da

Magistratura relativo ao Projeto de Lei n.º 672/XIV/2.ª para o qual o parecer do mesmo Conselho agora

apresentado remete, a tendência «na maioria dos países europeus da família jurídica a que pertence o direito

português», onde a conduta em apreço «continua a ser classificada como crime de violação de privacidade».

Refere-se, aliás, que tanto a Alemanha como a França ou a Espanha «inserem, nos seus sistemas penais,

este tipo de condutas nos crimes de violação da privacidade/intimidade do indivíduo, vendo como bem jurídico

protegido o direito à privacidade, à dignidade e reputação».

Não se vislumbra de que modo a divulgação não consentida de fotografias ou vídeos que contenham

nudez ou coito sexual possam ofender em primeira linha o bem jurídico da liberdade sexual, enquanto direito

que toda a pessoa tem à «autoconformação da vida e da prática sexuais (…): cada pessoa adulta tem o direito

de se determinar como quiser em matéria sexual, seja quanto às práticas a que se dedica, seja quanto ao

momento ou lugar em que a elas se entrega ou ao(s) parceiro(s), também adulto(s), com quem as partilha –

pressuposto que aquelas sejam levadas a cabo em privado e este(s) nelas consinta(m). Se e quando esta

liberdade for lesada de forma importante a intervenção penal encontra-se legitimada e torna-se necessária».

Aquilo que os crimes contra a liberdade sexual visam proteger é uma «livre e própria conformação da vida (na

esfera sexual)»3.

Por ser assim, a divulgação não consentida de fotografias ou vídeos que contenham nudez ou ato sexual,

sempre que tal ato sexual tenha sido praticado de forma livre, não pode ser enquadrada como crime contra a

liberdade sexual, devendo realçar-se a ideia de que os bens jurídicos ofendidos são os atinentes à

privacidade/intimidade – manifestação do fundamental right to be let alone sobre o qual, já em 1890,

escreveram Warren e Brandeis na Harvard Law Review. O que se pune é a indiscrição, «independentemente

da verdade ou inverdade da imputação e do carácter desonroso dos factos objeto de devassa». O que se

pretende proteger é «a liberdade que assiste a cada pessoa de decidir quem e em que termos pode tomar

conhecimento ou ter acesso a espaços, eventos ou vivências pertinentes à respectiva área de reserva»4.

Todavia, o projeto de lei apresentado pelo Chega, se formalmente não padece desta dificuldade – configura

a nova incriminação como crime contra a reserva da vida privada e não como crime contra a liberdade sexual

– suscita outras dificuldades, evidenciadas, nomeadamente, no parecer do Conselho Superior do Ministério

Público. Ao distinguir entre a devassa da intimidade da vida familiar (prevista no artigo 192.º e punível com

prisão até 1 ano ou multa até 240 dias) e a devassa da intimidade sexual (prevista no novo artigo 192.º-A e

3 Cfr. Jorge de FIGUEIREDO DIAS, Anotação ao artigo 163.º do Código Penal, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2012, ps. 715 e 716. 4 Cfr. Manuel da COSTA ANDRADE, Anotação ao artigo 192.º do Código Penal, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2012, ps. 1040, 1041 e 1043.