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II SÉRIE-A — NÚMERO 189

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Em síntese: acautelada a possibilidade de, nos termos do novo n.º 2 do artigo 178.º, o Ministério Público

desencadear oficiosamente o processo em nome do interesse da vítima, a manutenção da natureza semipública

destes crimes de coação sexual, violação e abuso sexual de pessoa incapaz de resistência praticados contra

vítimas maiores de idade parece a única solução coerente com o recorte dado ao bem jurídico que é a liberdade

sexual e com o entendimento de que constitui inaceitável forma de vitimização secundária a imposição de um

processo criminal indesejado por uma vítima de um destes crimes que tão flagrantemente contendem com a sua

intimidade.

Na doutrina portuguesa, este é o entendimento sustentado nomeadamente por Pedro Caeiro, muito crítico

quanto «à expropriação de direitos da vítima», com o Estado a arrogar-se «o direito de se substituir às vítimas

em decisões com alto potencial lesivo para as respetivas vidas». O autor pronuncia-se, expressamente, contra

projetos de lei que «propõem certas soluções que representam objetivamente uma perda de direitos por parte

da vítima, na medida em que — no intuito de a protegerem contra si própria — lhe retiram o poder de decidir

sobre a instauração do procedimento penal nos crimes de coacção sexual e de violação[…] Subjacente a estas

soluções está a pressuposição — fundada — de que a vítima destes crimes se encontra muitas vezes fragilizada,

quando não pressionada ou coagida, e que, portanto, o Estado não deve deixar totalmente nas suas mãos

direitos cujo exercício, em último termo, pode impedir a administração da justiça e ser prejudicial para a própria.

Todavia, a forma como o Estado pretende arrogar-se o direito de se substituir às vítimas em decisões com alto

potencial lesivo para as respetivas vidas contrasta flagrantemente com o discurso de empoderamento das

mesmas e de promoção da sua autonomia. Na verdade, estas propostas não nos parecem necessárias, nem

legítimas». Por outro lado, sob o enfoque dos compromissos internacionais e da avaliação de que a legislação

portuguesa é objeto no âmbito do GREVIO, sublinha-se que «parece seguro que a lei portuguesa cumpre

perfeitamente o segmento do artigo 55.º, n.º 1, da Convenção de Istambul, na parte em que impõe aos Estados

o dever de garantir que o procedimento pelos crimes de coacção sexual e de violação não dependa inteiramente

da queixa da vítima», na medida em que, por força do novo n.º 2 do artigo 178.º do Código Penal, «a vítima

nunca tem, em caso algum, um poder absoluto de impedir o início de um procedimento penal por estes crimes,

e é precisamente isso que a Convenção pretende», aduzindo-se enfaticamente que «a transformação da

coacção sexual e da violaçãoem crimes públicos não só não é exigida pelo direito internacional como criará

desnecessariamente casos de vitimização secundária, que obrigarão a vítima a participar, eventualmente muitos

anos depois dos factos, de um procedimento formal que ela não deseja, e, no limite, a iniciar procedimentos

penais em casos em que a própria vítima — ao invés do Ministério Público — não se autorrepresenta como

tal»5.

A iniciativa legislativa em apreço, porventura reconhecendo alguma pertinência a estas considerações,

procura mitigar a natureza pública que pretende ver atribuída ao crime, admitindo que, depois da instauração

oficiosa do processo, haja um arquivamento do processo por mero requerimento da vítima. Chama-se, porém,

a atenção para a vitimização secundária decorrente da existência de um processo penal que a vítima não quer,

da criação para a vítima do ónus de se manifestar contra o processo e mostrar que a sua continuação é contrária

aos seus interesses, assim como o prejuízo para a credibilidade da justiça penal e para a realização da justiça,

por força da existência, ainda que breve, de processos meramente simbólicos e que redundam em

arquivamentos ainda que no processo já existam indícios da prática de um crime.

Parte III — Conclusões

1. A Deputada única representante do partido PAN tomou a iniciativa de apresentar à Assembleia da

República o Projeto de Lei n.º 599/XV/1.ª (PAN) — Consagra a natureza pública dos crimes de violação e outros

crimes contra a liberdade sexual, procedendo à alteração do Código Penal.

2. A iniciativa legislativa sub judice visa outorgar natureza pública aos crimes de coação sexual, violação,

abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, fraude sexual e procriação artificial não consentida e admitir o

5 Cfr. CAEIRO, Pedro — Observações sobre a projetada reforma do regime dos crimes sexuais e do crime de violência doméstica. In Revista Portuguesa de Ciência Criminal. Ano 29, n.º 3 (2019), p. 668 ss (a publicação tem na base as observações enviadas ao Grupo de Trabalho:

Alterações Legislativas – Crimes de Perseguição e Violência Doméstica, da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, da Assembleia da República, como complemento da audição que teve lugar a 31 de Maio de 2019.