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30 DE ABRIL DE 1994

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e não hemofílicos que vieram exigir do Estado o pagamento de indemnizações coloca estes últimos numa posição de manifesta fragilidade em relação à qual o provedor de Justiça não pode ser estranho. Isto porque, em princípio, caberia aos lesados «fazer prova dos factos constitutivos do direito alegado» (artigo 342.°, n.° 1, do Código Civil), pese embora a equidade segundo a qual julga o tribunal arbitral criado a partir do Decreto-Lei n.° 237/93, de 3 de Julho [cf. artigo 3.°, n.° 1, alínea a)].

46 — Neste tipo de casos, vem a doutrina reconhecendo a necessidade de vulnerabilizar o ónus da prova. Como afirma o Prof. Sinde Monteiro («Aspectos particulares da responsabilidade médica, in Direito da Saúde e Bioética, Ed. Lex, 1991, Lisboa, p. 147), «pode entender-se que a 'criação de um risco injustificado' ou o 'agravamento dos riscos' culposamente provocado pelo acto médico são um fundamento válido para aligeirar a prova de nexo causal, podendo conduzir à inversão do ónus».

47 — De acordo com esta ideia, à qual não são de todo alheias motivações de equidade, como reconhece o ilustre autor, o ónus pode recair, em diferentes graduações, mais ou menos, sobre o lesado.

48 — Por outro lado, o artigo 8.° do já citado Decreto-Lei n." 48 051, de 21 de Novembro de 1967, estabelece uma presunção em desfavor do Estado e demais pessoas colectivas públicas, no caso de se tratar de prejuízos especiais e anormais, estando em causa «serviços administrativos excepcionalmente perigosos» ou «coisas e actividades da mesma natureza», independentemente da licitude da conduta.

49 — Todavia, observe-se que não é objecto desta estatuição o ónus da prova quanto ao nexo de causalidade. A citada norma apenas estabelece uma presunção de culpa do Estado em favor do lesado.

50 — Importará pois, sequencialmente, considerar um facto sobejamente relevante para as questões em apreço. Retomando o relatório sempre citado, pode ler-se, nas conclusões, a fl. 10:

4) No Hospital de São José, à semelhança de todos os outros hospitais do País, não era ao tempo registado na ficha do doente o lote que lhe era administrado, mas, unicamente, as unidades de factor, quer sob a forma de concentrado comercial, quer sob a forma de crioprecipitado, não se sabendo, assim, quais os hemofílicos a quem foi aplicado o produto respeitante ao referido lote.

51 —A impossibilidade de conhecer a quem foi transfundido o produto de determinado lote, exclusivamente determinada pela ausência de quaisquer registos que permitam estabelecer a correlação, cabe por inteiro à Administração Pública, a qual não agiu, uma vez mais, com a prudência e cuidado que a utilização médica de sangue e de produtos seus derivados exige.

52 — A prova do nexo causal por quem invoca o direito a uma indemnização por actos de gestão pública ilícitos tornar-se-ia assim, na situação vertente, demasiado onerosa. ,

53 — Contudo, face a estas circunstâncias, mais que uma vulnerabilização equitativa do ónus da prova (v. supra, n.° 45), mais que uma presunção de culpa por parte do Estado nos termos da responsabilidade objectiva assacada pelo artigo 8." (a qual prescinde da ilicitude do facto gerador de dano, v. supra, n.° 47), beneficiarão os

lesados da regra de inversão do ónus da prova inscrita no artigo 344.°, n.° 2, do Código Civil, onde se dispõe:

Há também inversão do ónus da prova quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei de processo mande especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações.

54 — A diferença entre o recurso a esta disposição e aos outros meios mencionados (aliás, o artigo 8." do Decreto-Lei n.°48 051, de 21 de Novembro, de 1967, caso fosse de aplicá-lo, não afastava a regra geral do artigo 342.°, n.° 1, do Código Civil) constitui uma diferença subtil, mas também substancial.

55 — Com efeito, por esta via, «o ónus da prova do contrário significa simplesmente que se essa prova não for feita nem resultar de outros elementos do processo se tem como assente o facto presumido» (v. Revista de Legislação e Jurisprudência, 106.°, p. 383).

56 — Em resumo e por outras palavras, deve sublinhar--se o posicionamento, em desfavor do Estado, dos seguintes aspectos:

a) A posição débil, de quase sujeição, dos doentes a quem são administrados sangue ou produtos seus derivados com fins terapêuticos, a qual lhes restringe intensamente qualquer domínio de facto sobre os citados actos médicos e sobre os demais actos de gestão pública conexos, impondo, assim, uma necessária cedência da regra geral sobre o ónus da prova, em termos equitativos;

b) O não cumprimento de deveres de cuidado quanto aos riscos inerentes, em concreto, à administração do sempre referido lote de factor vtn, adjudicado pela Secretaria-Geral do Ministério da Saúde, em 31 de Janeiro de 1986, indiciando negligência;

c) A representação desses mesmos riscos, por repetidas vezes, pela APH e por outras entidades, junto de órgãos da Administração com competência para determinar a suspensão da utilização do lote n.° 810 536, enquanto não fossem possuídos resultados claramente satisfatórios, em termos de segurança dos indivíduos sujeitos a transfusão, indiciando negligência consciente;

d) A ausência de quaisquer registos a partir dos quais seja possível fixar a posteriori um nexo de causalidade entre a administração de um lote infectado e as lesões sofridas, invertendo o ónus da prova, à luz do artigo 344.°, n.° 2, do Código Civil;

e) O não cumprimento de disposições regulamentares contidas no Despacho n.° 12/86, de 18 de Abril (Diário da República, 2." série, de 5 de Maio de 1986), nomeadamente, as dos n.os 1, 4 e 4.1.

57 — A tudo isto ainda poderá acrescer a responsabilidade por omissão quanto à não publicação de normas regulamentares ou legislativas que determinassem a aplicação de conhecimentos científicos correntes e comummente tidos por adequados à época. É importante considerar que a utilização do método de pré-aquecimento, em 1986, não seria de desprezar.

58 — Desde finais de 1985 que a comunidade científica chamava a atenção para o método de çc4-aquecrmento,