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21 DE ABRIL DE 1988 159

Na altura apercebi-me de que os três artigos da Constituição que contendem com este problema, ou sejam, os artigos 22.°, 120.° e 271.°, são preceitos de muito difícil conciliação e muito imperfeita redacção e tecnicamente muito defeituosos.

Assim sendo, percebo bem que o PCP tenha sentido alguma necessidade de contribuir para endireitar esta vara torta. Não creio, porém, que o tenha feito de forma muito feliz. Eu, que acho que foi bom ter sido chamada a atenção para esta facto e que existem aqui contributos sobre os quais há que reflectir, fico, depois de ler a proposta do PCP, ainda um pouco mais confuso - o Sr. Deputado José Magalhães perdoar-me-á, mas a verdade é que fico ainda mais confuso.

Em primeiro lugar, ouvi aqui referir a expressão "interesses legalmente protegidos dos cidadãos", que é uma expressão constante do artigo 271.°, mas que não se encontra no artigo 22.° É já a Constituição que tem as duas expressões, ou seja, "prejuízo para outrem" e "violação dos interesses legalmente protegidos", o que constitui um primeiro problema.

Em segundo lugar, é evidente que a responsabilidade a que se refere o artigo 22.° - e penso que o Sr. Deputado Jorge Lacão chamou a atenção para isto - só pode ser a responsabilidade civil. No n.° 3 proposto pelo PCP diz-se - certamente por defeito de redacção, pois não tenho a menor dúvida de que o que se quer significar é isto mesmo - que "o Estado responde solidariamente com os titulares dos cargos políticos pelos crimes de responsabilidade". Ora, o Estado não responde pelos crimes; pode, quando muito, responder peias consequências dos crimes ou pelos prejuízos que os actos criminosos puderem causar a alguém, mas nunca pelos crimes de responsabilidade. Que eu saiba, não há solidariedade em crime, salvo no caso de co-autoria, etc., o que não é o caso.

Por outro lado, no que se refere à violação de direitos ou de interesses, seria mais correcto dizer-se, não "violação de interesses", que não é correcto, mas "lesão de interesses". E tudo isto são perplexidades.

Por outro lado, reparem que no artigo 22.° se diz "acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício". Esta expressão "e por causa desse exercício" não figura no artigo 120.°, o que constitui outra perplexidade. Por que é que num artigo se exige não apenas que a acção ou omissão seja praticada no exercício das funções, mas também por causa dele, e no outro se abandona a "causa"? É nitidamente uma deficiência técnica, pois não há aqui uma diferenciação consciente. Não tenho a menor dúvida a esse respeito.

Também quanto ao artigo 22.°, penso que, quer na parte não coberta pelas imunidades parlamentares, quer na parte não coberta pela irresponsabilidade dos magistrados, já se inclui a solidariedade do Govêrno para com todos os titulares de cargos políticos, porque é evidente que eles são titulares dos seus órgãos. Podem não estar aqui todos os titulares dos cargos políticos, tal como nós os definimos na lei da responsabilidade desses titulares, mas fizemos uma qualificação, que foi aquela, mas que poderia ter sido outra. De facto, a Constituição não diz o que é um titular de cargo político nem define cargo político. Sabemos, porém, o que são os órgãos do Estado, os seus funcionários e os seus agentes. O que é que fica fora disto? Os deputados certamente não ficam, porque são titulares de um órgão, e os juizes também não, na medida em que ou são titulares de um órgão, ou agentes do Estado, ou funcionários. Mas já não sei se o governador civil é titular de um órgão ou ele próprio um órgão; se os membros, os vogais e os presidentes das câmaras municipais e os membros da Alta Autoridade o são, se tudo o que nós classificámos como titulares de cargos políticos não cabe aqui. Então, na medida em que a letra do artigo 22.° não cubra todos os titulares de cargos políticos, como entendemos que deveria cobrir, aí, sim, se justificaria algum acrescento ou mesmo algum artigo que definisse o que é um titular político. Mas tenhamos atenção a isso, porque redigidos os n.ºs 2 e 3 do artigo 22.° com esta extensão, fica uma colisão entre a irresponsabilidade dos juizes, a imunidade parlamentar dos deputados e a responsabilidade civil, quando é preciso evitar essas colisões.

Por outro lado, fala-se aqui em acções ou omissões, o que já era referido no texto do artigo 22.° A expressão "acções ou omissões" já é muito mais vasta, abrangendo os crimes que, como é óbvio, se cometem por acção ou por omissão. Portanto, já cá se encontrava o crime, se se entender que cá se deva encontrar. E isto constitui uma matéria de interpretação, se se entender que não precisa de uma clarificação.

Tudo isto para dizer que considero também um pouco arriscado e não vejo bem na prática como configurar a hipótese concreta de uma função legislativa que possa fazer incorrer em responsabilidade, quer o legislador, quer o Estado. Pediria ao Sr. Deputado José Magalhães que me referisse um caso concreto, que neste momento tenha em mente, em que um indivíduo, através de uma acto legislativo, possa lesar alguém em termos de ser responsabilizado por isso, se queremos que continue a ser irresponsável pelas suas opiniões e pelos seus votos, se queremos que continue a ser verdade que o Govêrno não é responsabilizado nem pelas suas opiniões nem pelos seus actos. É essa outra das incoerências da Constituição, dado que o Govêrno é tão legislador como o parlamento. De qualquer modo, a Constituição não o imuniza ao mesmo nível, já que, pelo menos pelas opiniões e pelos votos, não diz que ele é irresponsável.

Quanto à própria função jurisdicional, pergunto: a que fica reduzida a responsabilidade dos juizes se lhes imputarmos uma responsabilidade civil por terem julgado "assim" ou "assado"? Como é que se avalia se um juiz julgou mal, processual ou substancialmente mal, ou se deveria ter respeitado um direito e não respeitou? Como é que isto se configura na prática? Tenho perante este problema uma grande apreensão, porque acho que existe não só uma grande confusão nesta matéria, mas também um grande sentido da dificuldade que ela envolve.

Assim sendo, penso que devemos reflectir sobre isto, sobre que apports positivos trazem as propostas do PCP. Admito que tragam alguns e não tragam outros, mas trarão muito menos do que se julga, porque os n.ºs 2 e 3 propostos pelo PCP cabem muito mais nos actuais artigos 22.°, 120.° e 271.° do que parece. A minha posição quanto a esta questão é de grande humildade, e pediria que me acompanhassem nisto, pois não vale a pena julgarmos que podemos ter certezas fáceis e dialogais, já que nesta sede e neste domínio essas certezas não são fáceis.