25 DE OUTUBRO DE 1988 1617
esteja, todo ele, erigido na óptica das garantias constitucionais, face à eventualidade da suspensão de direitos? Isto é, se o estado de sítio ou de emergência fosse, na Constituição Portuguesa, um instituto, exclusivamente encarado na óptica institucional, na óptica de quais e quantos órgãos de soberania participam na sua declaração, não faria sentido que se contivessem no artigo 19.° da Constituição - que está integrado nos direitos, liberdades e garantias, e, ainda por cima, princípios gerais - situações de restrição de direitos, liberdades e garantias. Portanto, toda a lógica da intervenção de mais que órgão de soberania, de especiais precauções na delimitação do conteúdo da concreta declaração do estado de sítio e do de emergência, o próprio regime jurídico da fórmula através da qual é declarado estado de sítio ou de emergência, a participação do próprio Presidente da República, tudo isto resulta de a lógica do estado de sítio ou de emergência pressuporem a restrição, em maior ou menor grau, de direitos, liberdades e garantias.
Não me parece que o instituto esteja constituído na óptica da maior ou menor participação das Forças Armadas nas tarefas decorrentes da declaração de estado de sítio ou de emergência. Então, sempre terá de se reconhecer que um governo que se veja perante uma situação de calamidade pública, onde não se justifique a restrição de direitos, liberdades e garantias, só por masoquismo irá recorrer à fórmula da declaração do estado de emergência, na medida em que terá de passar por uma tramitação processual e por um crivo de participação de órgãos de soberania que se reveste, apesar de tudo, de alguma morosidade e de alguma complexidade, sem que, na realidade, militem, nesse caso concreto, as razões profundas que justificam a sua participação - sua, desses órgãos de soberania. Porque não há conteúdo concreto de restrição de direitos.
O Sr. José Magalhães (PCP): - V. Exa. está a pensar, por exemplo, em hipóteses como a do recurso às Forças Armadas para debelar incêndios florestais e situações similares?
O Sr. António Vitorino (PS): - Em situação desse género, podemos estar perante um caso de calamidade pública, de facto, onde não há lugar à restrição de direitos, liberdades e garantias, e onde toda a tramitação processual do estado de emergência seria manifestamente inadequada. Portanto, segundo o mesmo princípio da economia processual, parecer-nos-ia - a benefício de nos persuadirem do contrário - que não repugnava que fosse possível a lei prever as condições em que, nesses casos, se poderia recorrer à colaboração das Forças Armadas, para fazer face a dificuldades sentidas pelas populações civis, em situação de calamidade pública, sem a necessidade de percorrer, não diria a via crueis, mas quase, da declaração formal do estado de emergência, uma vez que aí não militava nenhum dos critérios atinentes às restrições de direitos, mas apenas e tão-só, e no limite, o problema de articulação das cadeias hierárquicas das Forças Armadas e da administração civil.
Em nosso entender, em situação de calamidade pública, sempre se deverá entender que a prevalência deve ser dada à intervenção das autoridades civis com competências sobre a matéria; contudo, perante a eventualidade de utilizar três aviões da Força Aérea, para lançar sobre uma serra ou uma vasta zona do território nacional em chamas água ou gás carbónico, parece-nos que há que consentir nesta solução e parece-nos justificar-se uma forma constitucional habilitadora dessa faculdade legal - parece-nos justificar-se. Mas, para que não subsistam dúvidas, a nossa intenção é apenas esta e não a de, por esta via, esvaziar de conteúdo o sentido de estado de emergência em caso de calamidade pública, o qual continua perfeitamente a justificar-se nas situações em que se justifica a imposição de restrição de direitos, liberdades e garantias.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Apenas gostaria que os Srs. Deputados do PSD, se o entenderem, pudessem não ter - como, de resto, não têm tido - uma postura de mudez perante uma matéria destas, porque ela é muito melindrosa, qualquer que seja o significado a atribuir à proposta do PS.
Por outro lado, devo dizer, em relação a estas observações do Sr. Deputado António Vitorino, que não sei se muitas das suas preocupações não estão contempladas na redacção actual do preceito. É com base na interpretação da redacção actual do preceito que, ao que suponho, se têm efectivado as missões aludidas. Portanto, a introdução deste aditamento, não sendo necessária, pode apenas abrir um campo de reflexões melindroso que, de resto, aqui explorámos em termos que se encontram exarados em acta, para todos os efeitos. Provou-se que se suscitam alguns problemas que não me parecem (devo dizer) atómicos, mas devem ser lidos integradamente, insisto nisso, com aquilo que venha a ser dirimido em sede do artigo 19.° Se se clarificasse um pouco mais os regimes de estado de sítio e de emergência, em sede do artigo 19.°, boa parte das observações que fiz deixaria de ter cabimento, porque estariam estabelecidas, em sede adequada, as cautelas que nos preocupam. Todo o campo de reflexão, aberto por esta cláusula, nesta sede, passaria a ser periférico, secundário.
Em todo o caso, não quis deixar de registar estes aspectos, porque uma cláusula de abertura deste género é susceptível, obviamente, não apenas de indébitas interpretações extensivas como, sobretudo, de originar e "legitimar" práticas que, embora possam ter limites constitucionais, não deixam de acarretar alguns riscos. Foi apenas para este aspecto que eu quis alertar.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, agradeço-lhe por ter solicitado que o PSD se pronunciasse. Mas, de algum modo, já referi que a nossa posição é esta: efectivamente, não propusemos nenhuma alteração à redacção actual do preceito, muito embora pensemos que ela não espelha exactamente aquilo que deveria ser, e é, a realidade de hoje, da actuação das Forças Armadas nesta matéria, que não têm uma missão permanente de intervenção para satisfação das necessidades básicas e para a melhoria da qualidade de vida das populações. Isto é uma crítica, e tem de ser interpretada já não como uma crítica ao que é proposto pelo PS, mas sim em relação ao normativo vigente.
Por outro lado, compreendemos e achamos correcta esta preocupação que o PS manifesta, porque, essa sim, como inovadora, é importante; mas estaremos dispostos a encontrar uma fórmula, se não for muito complicada, que acautele devidamente algumas das preocupações que, porventura, são de uma jurisprudência cautelar, eventualmente excessiva, que o PCP revelou.