A Sr.ª Prof.ª Doutora Paula Escarameia: - Pois é… Depende… A não ser que consideremos que isto cabe no n.º 1 do artigo 8.º da Constituição, que é o Direito Costumeiro Internacional, e acho que é. Se considerarmos isso, então, esta questão das imunidades já estaria acima da Constituição. E o meu entendimento não é assim tão estranho como isso, porque foi o entendimento do Conselho de Estado espanhol, dos alemães e dos austríacos. Todos eles entenderam que a questão das imunidades estava acima da Constituição.
Devo dizer que a minha opinião pessoal quanto a isto é esta: se tivéssemos uma situação em que o Presidente da República cometesse um destes crimes, nós já não tínhamos sequer a Constituição, quer dizer, nós já não estávamos no regime que estamos, mas numa situação de uma ditadura, de um abuso extraordinário. E, nessa altura, o que menos me preocupava era a Constituição, porque já não tínhamos sequer divisão de poderes, garantias de direitos, não tínhamos nada! Não é possível, com o nosso sistema, chegar-se a um ponto em que um Presidente pudesse ser acusado de um tipo de acto desses, porque são actos tão graves, tão graves… Percebo que, em relação aos crimes de guerra, possa haver aqui alguma dificuldade - já para o genocídio e para os crimes contra a humanidade, acho totalmente impossível, porque, então, já não tínhamos um Parlamento a funcionar, já nada funcionava! Quanto aos crimes de guerra, aí ainda é possível ter algumas dúvidas. Mas os crimes de guerra têm um enquadramento também bastante elevado…
Mesmo assim, não é fácil provar - veja-se o caso da Jugoslávia. A Jugoslávia, por exemplo, tem uma acção contra nós no Tribunal Internacional de Justiça - agora, somos réus - por causa dos ataques da NATO ao Kosovo. O mais provável é que o caso acabe na fase das questões processuais e não vá para a frente. Mas o que é certo é que, mesmo nos crimes que foram praticados no Kosovo - enfim, nas situações de guerra, há sempre muitos abusos -, mesmo nessa situação, a Procuradora do Tribunal não intentou nenhum caso contra as forças da NATO. Quer dizer, o Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia não está a julgar nenhum indivíduo envolvido com o uso da força da NATO, tendo especificamente competência para tal.
Em suma, não é fácil, mesmo assim, um crime de guerra ter um nível tal para vir a ser julgado por um tribunal destes. Há muitíssimos degraus por que tem de passar, não é fácil.
Sei que estou a demorar muito tempo, pelo que deixaria agora estas considerações relativas às questões colocadas pelo Sr. Deputado Alberto Costa e passaria a responder ao Sr. Deputado José Matos Correia.
Julgo já ter respondido a algumas das suas questões, Sr. Deputado José Matos Correia, mas agora, mais especificamente, vou abordar outras. Quanto à formulação escolhida pelo PSD (em contraste com a do PS) para tratar desta matéria, também concordo com a sua localização no artigo 7.º. Relativamente ao que referiu sobre as revisões futuras, tem toda a razão. Mas também devo dizer, se me permite, que não gosto muito nem de uma fórmula nem de outra. É que não gosto deste "pode" e acho que se poderia melhorar um pouco a fórmula. Um dos problemas é precisamente o das revisões do Estatuto. Nós poderíamos simplesmente dizer que cumpriremos o que estiver no Estatuto.
Agora, quanto às revisões futuras do Estatuto, o processo de revisão é tão difícil - e não sei se estão muito familiarizados com os artigos relativos à revisão - que, em relação aos crimes, só vincula aqueles que concordarem especificamente com a revisão e, nos outros casos, é preciso a ratificação de 7/8 dos membros da Assembleia dos Estados partes, uma maioria altíssima. Quer dizer, as revisões do Estatuto são muitíssimo difíceis. Como dizia, é preciso 7/8 para todos os outros assuntos substantivos e, para as definições dos crimes, é preciso unanimidade: um Estado que não concorde nunca está vinculado. Isto faz com que não seja muito perigoso, ou talvez não tão perigoso como isso, dizer-se na Constituição que cumpriremos o constante do Estatuto.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - As condições previstas no Estatuto incluem também o preceituado face à revisão do mesmo?
A Sr.ª Prof.ª Doutora Paula Escarameia: - Exactamente, "nas condições nele previstas", inclui as condições da revisão.
No entanto, também percebo um pouco esse argumento, de que, se calhar, era melhor uma fórmula, enfim, de que cumpriríamos as obrigações decorrentes do Tribunal Penal Internacional, estatuídas no Tratado de 17 de Julho para evitar vinculações a futuras alterações. Contudo, pelo que afirmei anteriormente, preferia uma vinculação de uma maneira qualquer que não desse a ideia de que é apenas o que actualmente é o Estatuto de Roma, aprovado em 17 de Julho de 1998. Talvez uma fórmula um pouco mais vaga para permitir essas futuras alterações. Como digo, o Estado é tão forte nesse ponto que é muito difícil haver um perigo muito grande.
Quanto às questões relativas às reservas e às declarações, sem dúvida alguma, não se podem fazer reservas e, por isso, não se podem fazer declarações que constituam reservas. A França foi muitíssimo criticada, porque tem declarações que são verdadeiras reservas. A França foi um dos primeiros Estados a ratificar, mas fez reservas. Aliás, a França foi a responsável pela existência do artigo 124.º, que cria uma moratória em relação aos crimes de guerra, durante sete anos. E a França usou esse artigo 124.º (claro que o usou, foi ela que o propôs e não saiu dali, de Roma, sem que tivesse o artigo 124.º), segundo o qual, durante sete anos, os seus cidadãos não podem ser julgados por crimes de guerra. E depois fez várias declarações, que são mais reservas do que declarações. Até agora, foi o único Estado a fazê-lo, porque a maioria não fez quaisquer declarações, ou fê-las de carácter prático. Estas últimas são boas porque úteis e não são contenciosas politicamente (como, por exemplo, qual é o Ministério que recebe as queixas, qual a entidade que recebe os pedidos de cooperação do Tribunal, etc.).
Em suma, eu seria totalmente contra que Portugal utilizasse as declarações para fazer uma reserva ou para dizer algo que vá contra o Estatuto. Isso, de modo algum.
Quanto à legislação posterior servir não para contornar mas para colaborar, sem dúvida, estou de acordo. E acho que precisamos de várias alterações na legislação, sobretudo, como referi, para os crimes e para o processo. Temos uma lei de cooperação judiciária, que já ajuda muito, mas, mesmo assim, muitos pormenores não estão lá.
Não sei se respondi suficientemente, acho que tinha de pensar mais algumas matérias, mas foi o que consegui agora.